quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Um obstinado desejo

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"Quem vive na cidade grande não consegue ficar numa cidade pequena", Lara me disse outro dia.
Ela sorriu um sorriso pleno e respondeu que queria trabalhar para o Corpo de Bombeiros.
Ela sorriu um sorriso pleno e respondeu que queria trabalhar para o
 Corpo de Bombeiros. (Divulgação / Pixabay)
Por Pablo Pires Fernandes*

O sorriso de Lara era inteiro. A boca aberta e larga era apenas o detalhe mais evidente, mas todo o seu rosto transmitia felicidade, estava iluminado. Era seu aniversário de 6 anos e ela rasgou o papel colorido do presente com ansiedade até se deparar com um caminhãozinho do Corpo de Bombeiros. A criança se esqueceu de tudo que a cercava, a balbúrdia evanesceu. Fascinada, deteve-se por uns instantes diante do objeto e, em seguida, deu um abraço sincero na mãe e no pai.

O fascínio de Lara pelos bombeiros não era diferente de tantas crianças. O heroísmo, a coragem de enfrentar o perigo, o prestígio que desfrutavam na sociedade e, sobretudo, o princípio de ajudar as pessoas, sem se importar quem são. Tudo aquilo a encantava.

Um filme de princípios cristãos, bem hollywoodiano, assistido numa Sessão da Tarde alguns anos depois, fez o desejo de criança se tornar convicção. “Continue vivendo um dia de cada vez”, diz o personagem em crise conjugal. As imagens e o idealismo daquele personagem, que lutava para salvar vidas e seu casamento, ficaram gravados na memória dela.

Lara vivia um dia após o outro, mas não titubeou quando teve a chance de se mudar para Belo Horizonte. Curiosa, encheu-se de novas ideias. A música, a rua, tanta gente para conhecer e quantas histórias para compartilhar. Tinha apenas 14 anos e a cabeça cheia de possibilidades e sonhos.

A jovem tomou gosto pela cidade grande, porém os pais quiseram que ela voltasse para Governador Valadares, que ajudasse na casa e ficasse perto da família. A verdade é que a mãe, conhecendo o espírito inquieto da filha, temia que algo de ruim pudesse acontecer com ela. Lara era bonita demais e, mesmo com o espírito independente, não tinha idade para enfrentar a selvageria da capital.

Contrariada, foi. A cidade natal, tão íntima, lhe pareceu diferente. As velhas amizades eram sinceras, mas não lhe satisfaziam como antes. Achava as conversas enfadonhas e a rotina absolutamente entediante. Seu olhar havia se transformado. Era uma estrangeira no próprio lar.

“Quem vive na cidade grande não consegue ficar numa cidade pequena”, Lara me disse outro dia, abrindo uma cerveja. Voltou para Belo Horizonte e trabalha como garçonete. Tem 18 anos. Nota-se a inerente curiosidade, a franqueza e o desprendimento ao falar de sua vida para outro curioso que lhe enche de perguntas.

Lara me contou que o irmão se formou no curso do Corpo de Bombeiros. Fez tudo escondido da família que só soube quando recebeu o convite para a festa de formatura. “Acho que acabei influenciando meu irmão”, disse Lara, trazendo a conta.

Perguntei o que ela pretende fazer profissionalmente. Ela sorriu um sorriso pleno e respondeu que queria trabalhar para o Corpo de Bombeiros. Por quê?, indaguei. “Porque eu quero ajudar, quero salvar as pessoas.” A franqueza daquelas palavras era evidente, indubitável. Lara tem ética sólida, mesmo que ela nunca tenha refletido a respeito. Depois, ela ainda falou algo sobre não fazer mal a ninguém, sempre havia o bom comum em seus planos. Fui embora contente de ter conhecido a joia Lara.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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