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Nada mudará até que o povo, arrependido, contemple com gratidão as belezas e riquezas que lhes foram dadas.
O sol banhará seus vales, colinas, praias e trará o calor, a luz, a energia celeste em abundância. (Reprodução)
Por Fernando Fabbrini*
“E eis que nascerá ao sul do planeta uma terra de grande vastidão habitada por belos nativos, animais exóticos e peixes e anfíbios em profusão. E também aves de penas multicoloridas como se pintadas com os tons do arco íris, e que seus cantos maviosos soarão desde a alvorada até o entardecer. E essa terra terá rios caudalosos, grandes florestas, frutos de sabor paradisíaco como em nenhuma outra das redondezas. O sol banhará seus vales, colinas, praias e trará o calor, a luz, a energia celeste em abundância.
E também está escrito que nessa terra aportará flotilha da longínqua Lusitânia e, depois destas, virão outras naves e estrangeiros de todos os quadrantes, bárbaros e cristãos, ateus e tementes. E nessa terra serão misturadas as raças e culturas de forma jamais vista. Pois está escrito que chegarão as tribos da Britânia e que trarão consigo a esfera de couro de gamo, curtida em fel e inflada à força dos pulmões, e este objeto terá poderes sobre o povo que a ele se reverenciará como a um ídolo pagão, nos circos e estádios. E serão ouvidos gritos histéricos de louvor e ódio; virão combates ferozes entre as tribos divididas pelas cores de seus trajes e o teor de seus brados de guerra. E tamanha será a adoração pela bola de couro que os homens, mulheres e infantes, iludidos, se auto proclamarão “reis”, sentindo-se superiores aos demais povos do mundo nos gramados verdejantes.
Pois será essa nova nação governada por deserdados, imperadores e ditadores, o que ao povo não fará muita diferença, refratários que muitos serão à ordem e também ao progresso, desde que possam comprar carruagens e passear pelos becos fétidos onde escorre água imunda. E abraçarão uns aos outros ao som dos tambores dos festins de louvor à carne, vertendo suor copioso e aplacando a sede com a bebida do malte da cevada. E eis que assim, despreocupados e levianos, cultuando a bebida, o festim estival e a bola de couro, serão os habitantes iludidos saecula seculorum pelos seus líderes, e viverão de mentiras e promessas que nunca se realizarão. E em suas casas faltará o pão; e aos seus filhos será negado o conhecimento; e mesmo dormindo nas filas suas chagas não serão curadas; e padecerão de frio e do rigor do sol; de fome, sede, medo e ranger de dentes sem se darem conta das razões do próprio infortúnio.
E está escrito que num certo tempo virão homens barbudos e irados, e estes se dirão redentores e salvadores da terra; e neles o povo ingênuo acreditará, carregando-os aos ombros até os palácios e dando-lhes as chaves do reino, o segredo dos cofres, as armas e a confiança de suas almas. Mas também está escrito que os ditos redentores mentiriam; nos palácios deixariam entrar corvos, abutres e lobos famélicos nas trevas da noite; e arrombariam as portas e tomariam para si as riquezas como nunca antes naquele país. E que se fartariam de luxos e devassidões, e que beberiam vinhos raros em seus castelos de três pisos frente ao mar e que, zombeteiros, negariam tudo e se esconderiam nas sombras como vis salteadores.
E eis que os deuses do Panteão, indignados e descrentes, lançariam castigos e provações, na esperança de que o povo despertasse de sua apatia, desleixo e lassitude. E foi assim que os saxões da Germânia, no Torneio das Bolas, balançaram sete vezes contra apenas uma daquele reino, causando estupor e melancolia inimagináveis. E fizeram tremer o solo e barragens ruíram; e aldeias sufocaram-se na lama. E os deuses agitaram as águas paradas do antigo Egito e dela brotaram insetos trazendo moléstias ocultas das florestas d’África. E o trabalho faltou; os artesãos foram à míngua; e mendigos proliferaram; e as canções dos bardos tornaram-se estúpidas e monocórdias. Setas, petardos e projéteis enlouquecidos voaram pelos ares, matando inocentes. Um tempo de escuridão, fome, tristeza e descrença se abateu sobre o reino.
E finalmente eu vos digo que novos castigos virão em cavalos do Apocalipse, enquanto os ladrões, impunes, se agarrarem aos tronos com seus corvos e aves de rapina. Nada mudará até que o povo, arrependido, contemple com gratidão as belezas e riquezas que lhes foram dadas; e que abandone a bola saxônica, a bebida nórdica e os festins estivais. E que se erga do berço esplêndido, e limpe seus quintais, e trabalhe com afinco, e não se iluda com promessas vãs dos arautos, e não carregue nos ombros falsos redentores e profetas. Em verdade, em verdade, eu vos digo: tomai, todos vós, vergonha na cara, ó cambada!”.
* Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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