sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Com quem a Igreja deve dialogar?

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O evangelho e a luta pelo bem comum
Antes de Francisco, João XXIII foi chamado de comunista por grande parte dos católicos italianos.
Antes de Francisco, João XXIII foi chamado de comunista por grande 
parte dos católicos italianos. (Reuters)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

Há uma encíclica de João XXIII que passa despercebida aos olhos de muitos, mas que, na época em que foi publicada, inaugurou um tempo novo para a Igreja: a encíclica Pacem in terris, de 1963, considerada a primeira encíclica moderna da história do papado. É a primeira vez que um sumo pontífice romano utiliza o termo “aos homens de boa vontade” para endereçar uma encíclica papal. Lendo-a atentamente, poderemos compreender alguns dos passos dados pelo Papa Francisco na atualidade, o qual assumiu para si o desejo de contribuir para uma aplicação maior das aspirações do Concílio Vaticano II.

Publicada durante a segunda fase da assembleia conciliar, ela acabou servindo de base para documentos importantes produzidos pelo concílio, como a Dignitatis Humanae e a Gaudium et spes, apesar desta última ter adotado antigas concepções superadas pelo “papa bom”. Mas qual novidade esse documento traz?

Antes de tudo, João XXIII rompe um ciclo milenar em relação à mentalidade bélica cristã e a concepção de que existiam condições lícitas para a convocação de uma guerra. Na teoria clássica, esse conceito é chamado de guerra justa, elaborado de maneira embrionária nos escritos de Santo Agostinho. Com a ascensão da bomba atômica, papa Roncalli praticamente exclui sua aplicação, passando a considerar a guerra como algo irracional, dada a desproporcionalidade e o alcance dos novos instrumentos bélicos. A segunda coisa é que, pela primeira vez na história, o papa fala dos direitos e deveres do homem enquanto pessoa, não somente no que se refere à concepção teológica dos deveres em correspondência à verdade. Outro caráter de novidade é que o papa incentiva o diálogo com todos os movimentos políticos sem especificar a “vertente”, considerando que, em todos eles, pode haver algo de positivo para a construção da sociedade. Apesar de ter seguido a linha dos seus predecessores no tocante à condenação do marxismo em outros escritos, João XXIII incentiva, na Pacem in terris, que todos trabalhem juntos pelo bem comum. Ou seja, condena-se toda e qualquer ideologia abstrata ou totalitarismo, mas não tolhe-se a liberdade de atuação dos movimentos políticos. Por conta disso, Roncalli foi chamado de comunista por grande parte dos católicos italianos. Vale lembrar que a Itália acabara de viver o período sombrio de regime do partido único instaurado pelo fascismo de Mussolini, e isso contribui para essa nova visão do pontífice. Ele compreendeu isso após um longo período de resistência do papado em relação à própria democracia; não há democracia sadia onde não existem os dois lados e, nesse ínterim, a Igreja não deve assumir para si um partido, mas transcendê-los. Basta pensarmos que Pio IX com seu famoso non expedit de 1874 impediu que os católicos participassem das eleições e da vida política do estado italiano. Tal disposição foi derrubada implicitamente por Bento XV que, em 1905, permitiu aos católicos de aderirem ao partido popular italiano, do padre Don Sturzo, cuja fundação foi inspirada nos pilares da doutrina social católica. O sacerdote, grande opositor do fascismo, criou a palavra “totalitarismo” para referir-se à ditadura mussoliniana, hoje adotada pela historiografia contemporânea para definir todos os regimes que se instauraram após a primeira guerra mundial.

Se observamos bem, a história se repete. Papa Francisco é chamado de comunista simplesmente por levar a cabo a intenção de dialogar com todos aqueles que, independente da orientação política, prezam pelo bem da sociedade. A história também mostrou que toda e qualquer polarização não pautada pela reflexão e pelo discernimento acurados pode ameaçar aquilo que a duras penas foi conquistado: a possibilidade de lutar pelo bem de uma inteira nação fazendo política. Porém, acabam confundindo política com passional politicagem.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e bacharel em História da Igreja e bens culturais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e atualmente, mestranda em História da Igreja na mesma instituição. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

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