sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Fraternidade como caminho para superação da violência no Brasil

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Os índices de violência são mesmo alarmantes e demonstram uma sociedade com laços de sociabilidade frágeis.
A violência cultural faz com que nossa sociedade não reconheça como violência muitas situações de agressão.
A violência cultural faz com que nossa sociedade não reconheça como violência muitas situações de agressão. (Reprodução/ Pixabay)
Por Frederico Santana Rick*

A Campanha da Fraternidade da CNBB ocorreu em âmbito nacional pela primeira vez na Quaresma de 1964. O projeto carrega o espírito do impulso renovador do Concilio Vaticano II em andamento na época. Duas marcas que nesse momento histórico se atualizam. Agora, como naquele momento, assistimos à diminuição do espaço democrático na sociedade brasileira, colocando em ameaça até o mais comezinho dos elementos da democracia formal, eleições livres. Por outro lado, se naquele momento o Concílio Vaticano II trouxe novos ares, assistimos hoje ao espírito renovador que Papa Francisco traz a humanidade e a igreja.

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E ainda, coincidentemente ou não, temos como tema da CF desse ano “Fraternidade e Superação da Violência” e lema “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Bela escolha da CNBB e dos bispos do Brasil. O objetivo é promover a reflexão e iniciativas para superarmos a violência, promovendo a cultura da paz e a justiça à luz do Evangelho. Não é pouca coisa. O tema é atual, complexo e desafiante e, sobretudo, é do interesse do conjunto da sociedade.

O texto base da CF 2018, publicado pela CNBB, não traz respostas fáceis ou simplistas para a problemática da superação da violência. Sustenta posições avançadas. Muito longe de identificar a violência apenas como crime e tráfico, incorpora na análise a dimensão estrutural, cultural e direta. Nesses marcos, o que a grande maioria da população percebe ou é levada a entender como violência, não chega a ser a décima parte da violência presente na sociedade brasileira.  

Uma sociedade de muitas violências

Os índices de violência são mesmo alarmantes e demonstram uma sociedade com laços de sociabilidade frágeis, com baixo índice de solidariedade entre classes, naturalização de graves desigualdades sociais e banalização da violação dos direitos humanos de grande parte da população. Uma realidade resultado da formação econômica e social do povo brasileiro marcada pela escravidão, que, mudando de roupagem ao longo das décadas, mantém intacta uma estrutura de violência, exclusão e dominação.

Temos 3% da população mundial e no entanto somos responsáveis por 13% dos assassinatos no planeta. Os homicídios são a principal causa de mortes entre os jovens de 15 a 24 anos no Brasil. Entre 1980 e 2014, o número de homicídios por arma de fogo cresceu 592,8%. Uma realidade muito distante da imagem bastante difundida de um país pacífico, ordeiro e feliz. No campo, os índices são igualmente alarmantes e têm raízes no Brasil colônia, latifundiária e escravocrata, responsável pela chacina de indígenas e de africanos escravizados. Um passado que conformou elites acostumadas a mandar aplicar castigos e torturas, e a ver o outro como escravo-objeto.

A violência direta ganha maior espaço no noticiário, mas não é ela a que mais agride e mata o povo brasileiro. São muitas as violências contínuas, que causam danos a vários segmentos da sociedade, sobretudo aos pobres, aos trabalhadores, aos negros, às mulheres, à juventude e aos LGBTs, para ficar apenas em alguns.

São muitas vítimas dos mesmos processos estruturantes, que reproduzem uma realidade de negação do acesso de amplas maiorias ao trabalho formal, à moradia, à educação, à saúde, ao alimento em qualidade e quantidade adequadas, ao saneamento, aos bens culturais. Graves situações de violência e desigualdade de oportunidades culturalmente legitimadas, silenciadas e negligenciadas. Condenando dezenas de milhares de brasileiros a situações degradantes. Essa é a situação das mulheres, que são 51% da população. São agredidas em 72% dos casos dentro da própria casa, 43% dos casos o agressor é o parceiro ou ex-parceiro. Na grande maioria dos casos o machismo e o sentimento de posse que ele engendra está por traz das agressões, e atinge sobretudo mulheres jovens, que também são as principais vítimas do tráfico de pessoas, 75%, segundo a ONU Mulheres.

As crianças são grandes vítimas do nosso sistema econômico que mata 17 mil crianças e jovens todos os dias no mundo, mantendo 1 bilhão de crianças na pobreza. Essa situação lhe retira oportunidades para seu desenvolvimento, perpetuando o ciclo de pobreza. No Brasil, 42% das crianças e adolescentes (17,8 milhões) vivem abaixo da linha da pobreza. Jovens que terão menor escolaridade e entrada em média aos 14 anos no mercado de trabalho, prejudicando seu presente e seu futuro. 60% dos trabalhadores brasileiros começaram a trabalhar com menos de 15 anos de idade. Esse índice é bem maior entre os pardos e pretos. 

Não por um acaso o Brasil tem 650 mil presos, a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que 40% não tem sentença definitiva, e mesmo sendo “presos provisórios”, vivem em masmorras. Nada mais distante dos princípios da Constituição Brasileira que apregoa a recuperação e a reintegração, a realidade é o confinamento em condições sub-humanas. Para garantir a situação sobre controle, as classes dominantes produziram uma força de segurança pública que se volta contra seu povo, ao invés de serem promotoras do exercício da democracia, mediadora de conflitos e responsável pela preservação da vida. Policiais promotores da cultura da paz é um clamor de nosso povo. Nossa polícia não só mata, como morre em grande quantidade, e esse número vem aumentando.

Por sua vez, a violência cultural faz com que nossa sociedade não reconheça como violência muitas situações de agressão. Legitima ações violentas contra segmentos específicos. Responsabiliza o agredido pela agressão. Tornando a violência direta, presença tolerada e constante na sociedade. Culpa-se o drogado, o jovem, a mulher, seja pela roupa, pela atitude, pelo local onde estava, sendo a violência vista como punição por um comportamento desviante. Assistimos à naturalização de visões que inferiorizam as amplas maiorias do povo brasileiro.

Tendo em vista esses múltiplos determinantes da violência, a perpetuação das estruturas em nossa sociedade que a alimenta e preserva, recai, também no exercício da política e do sistema de justiça brasileiro. Em tais espaços de poder, as decisões constantemente ao longo de nossa história, tem legitimado a prevalência dos interesses do dinheiro sobre a dignidade do ser humano. É com muita naturalidade que a casta de políticos e juízes, por exemplo, defendem salários e regalias que mantém seu padrão de vida muitíssimo acima das condições de vida da ampla maioria da população. Ao mesmo tempo, decretam todos os anos, ordens de despejo de centenas de milhares de famílias pobres sem casa e sem teto.

O quarto poder, os meios de comunicação empresariais, são igualmente letais. Programas de TV incitam o ódio e a se fazer justiça com as próprias mãos. A paz é colocada como sinônimo de eliminação do outro. Saídas fáceis que escondem as raízes da violência, promovem o sensacionalismo e o punitivismo, agindo de forma violenta e dificultando a construção de uma cultura de paz. Deixa-se de mostrar visões críticas à extrema concentração de renda no mundo. Mostrar o mundo globalizado e excludente que vivemos. Nosso sistema econômico produz desigualdade e a riqueza está extremamente concentrada. 62 pessoas no mundo detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial, 3,8 bilhões de pessoas. Já o 1% mais rico no mundo, detém 99% de todo o dinheiro, sobrando 1% da riqueza para distribuir para 99% da população mundial.

Caminhos para superação da violência

Podemos superar a violência e construir uma cultura da paz. Temos aprendizados e exemplos pedagógicos de conversão pessoal, comunitária e de sociedade. Sabemos que, para a superação, nossa sociedade precisará da atitude firme e decidida do Estado, implementando políticas públicas que eliminem a enorme desigualdade econômica, política, social e cultural que fratura o povo brasileiro. A ausência até o momento dessas políticas distributivistas demonstra nossa incapacidade de romper com o passado excludente, seja por fortes resistências da classe dominante, seja por incapacidade das classes baixas de acumular força social para implementar um projeto popular. A superação da violência na sociedade brasileira passa por nos posicionarmos diante dessa história.

Superar a violência no Brasil implica nesse momento na construção de um novo pacto democrático que restabeleça a democracia no país. É tempo de plantar. O canteiro é fértil, temos uma tradição de pastoral social, ceb´s, grupos de fé e política, movimentos populares, trabalhos e obras sociais. E os ares são bons, saudemos Papa Francisco e seu compromisso com os pobres e a casa comum, saudemos os mais de 50 anos do Concílio Vaticano II, e os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Temos proposta e projeto. Nos alegremos com as iniciativas de construção de unidade das forças democráticas desse país, e iniciativas de mobilização social como Congresso do Povo, o Grito dos Excluídos e a Campanha da Fraternidade. Superar a violência no Brasil nesse momento, como já pronunciou a CNBB, significa lutar contra a “reforma” da Previdência.

*Frederico Santana Rick é mestre em ciências sociais pela PUC Minas e agente de pastoral social.

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