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Mãe, ainda estou morando naquela casa grande com mato ao lado onde vim parar poucos meses depois de você ter morrido.
Sim eu tenho saudade muito embora nunca tenha ido visitar seu túmulo. (Reprodução)
Por Ricardo Soares*
Mãe, tem coisa mais antiga, formato mais antiquado que escritor escrever cartas para a mãe ainda mais quando a mãe já morreu ? Pois é, esse sou eu agora, a essa altura dos acontecimentos. Sem muita originalidade, sentindo precocemente o peso da idade. Ontem mesmo para minha estupefação devolvi a uma moça um sorriso singelo depois dela me oferecer o assento preferencial do metrô. Não me senti ofendido mas senti o impacto opaco dos meus cabelos brancos refletidos no olhar da moça.
Sinto chegar celeremente a idade que você tinha quando partiu de males do coração. O meu deu um susto faz um tempo e fico sempre ressabiado se ele não pode me dar outro susto ainda mais agora que ele sofre os impactos da dor da perda de um grande amor, de um país desvairado , da falta de perspectivas profissionais, da falência da literatura, da política e do jornalismo brasileiro. É cru né mãe a gente admitir essas coisas assim , vísceras expostas, mas fazer o que quando vem chegando a estação de ocultação total das mentiras? Não adianta mais mentir. Muito menos para nós mesmos . Somos o que somos e o que não fomos podemos ser ainda ? Creio que até podemos correr atrás mas os tempos ficam mais curtos.
Mãe, ainda estou morando naquela casa grande com mato ao lado onde vim parar poucos meses depois de você ter morrido. Aqui comigo já viveram e morreram quatro cachorros- três machos e uma fêmea- muita lenha foi queimada na lareira da sala em noites e tardes frias, vivi e enterrei dois casamentos, fiz dezenas de comidas boas e ruins num fogão estraçalhado, tomei sol num gramado que hoje está feio, plantei muitas árvores, escrevi aqui dentro alguns livros .Poucos deles publicados.
Só agora , tantos anos depois de aqui estar, por circunstâncias muitas, passei a conhecer melhor os meus vizinhos um deles há mais tempo aqui do que eu , do outro lado da matinha há 20 anos. E nunca nos havíamos notado. Que lições isso ensina minha mãe ? Sobre a incomunicabilidade desses tempos? Sobre a falta de sintonia entre os iguais e desiguais ? sobre as laranjas nunca serem iguais ?
Meus dedos, tardiamente, agora vestem anéis. Sempre os achei bonitos, os anéis, mas só os prateados. E agora resolvi usá-los. Um dia um anel , em outros coloco até dois, três , quatro e saio pela casa, fuçando pela terra me exibindo para mim mesmo. Nunca me senti tão feio mas , por outro lado, nunca me senti tão certo do quão efêmera é a beleza. Beleza não garante nada minha mãe.
Tenho feito uma tosa poética em tudo que escrevi. Disso resultou um livro que tem até editores interessados. Mas, sabe-se lá porquê, eu postergo seu lançamento. Ainda gravito em torno de um outro livro que lancei ainda agorinha e que se chama “Amor de mãe”, dedicado evidentemente a você e que traz ali no seu bojinho algumas histórias que vivemos juntos. Mas é um livro sobre amor de mãe em geral, universal. Histórias que se alinhavam e se completam para tentar dar certeza ao leitor de que não existe amor maior que amor de mãe.
Assim sendo creio estar cumprida essa primeira missiva post mortem para você. Sim eu tenho saudade muito embora nunca tenha ido visitar seu túmulo desde o seu falecimento porque ali visitávamos juntos o túmulo do meu pai, seu marido. Ir agora ver os dois eu não dou conta. Sinceramente mãe eu não dou conta de tantas mortes, de tantos desencontros, até de tantos medos. Tenho chegado aos extremos do sentimentalismo, olho para os lados e não me vejo mais com os arroubos de um homem mais novo. As vezes suspeito que tenha perdido amores pelo meu pessimismo , pela incapacidade de fazer alguém feliz mesmo tentando de outro jeito. Mas mãe , todo mundo sabe que mães em geral nunca foram boas conselheiras sentimentais pois pensam antes de mais nada com o coração e não com a razão. Como o seu coração era fraquinho e suas certezas muito débeis é melhor a gente encerrar a prosa pelo menos por enquanto. Hoje eu devo pegar estrada para um lugar mais frio. Prometo me agasalhar. E quando eu voltar com certeza haverá de ter mais assunto.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 8 livros e dirigiu 12 documentários.
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