quarta-feira, 28 de março de 2018

No meio do caminho tinha uma pedra

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O enorme minério bruto na esquina era o ímã que reunia a turma.
Subindo a rua, pediu licença à turma e se sentou na pedra.
Subindo a rua, pediu licença à turma e se sentou na pedra. (Reprodução)
Por Pablo Pires Fernandes*

A esquina e a pedra, na lembrança de Jeferson, eram bem diferentes da que via agora. Todos os dias, saía para trabalhar e a turma estava lá. Sentia um nó ao ver os amigos e os filhos de outros se revezando na função de atender os bacanas que subiam o morro em carros novos e lustrados. Cumprimentava a turma, mas não gostava de estender o papo. Descia seu caminho e, quando subia de volta para casa, apenas batia a cabeça num aceno formal.

Na memória de Jeferson, a pedra determinava tudo. O enorme minério bruto na esquina era o ímã que reunia a turma. Naquela rocha, os amigos se encontravam depois da escola para escolher os adversários da pelada no campinho. Confabulavam e sonhavam sobre o futuro. As moças provocavam dúvidas, lágrimas e brigas de tirar sangue. Testemunhou muitas histórias e guarda um bocado de segredo, a pedra.

A bufada do ônibus fez Jeferson se atentar para o asfalto, os degraus e, depois de cumprimentar a motorista e sacar o cartão do bolso – aproximou-o do aparelho, que apitou e emitiu uma luz verde –, atravessou a catraca. Esgueirou-se até o fim do corredor, com o mínimo roçar possível. Ignorava os sacolejos e os esbarrões, seu pensamento percorria outras vias. No ônibus seguinte, repetiu todos os atos, mecanicamente. Mas a pedra não lhe saía da cabeça.

O trabalho na loja, o atendimento, o troco, o esforço em sorrir, todas essas miudezas ocuparam os pensamentos de Jeferson. A pedra voltou-lhe à mente quando subiu a escada do ônibus. A tarde caía e, por todo o trajeto – quase todo, na verdade –, a imagem dela o inquietava.  

Na Rua do Ouro, a condução foi parada por uma blitz. Dois homens fardados entraram pela porta da frente, falavam alto, ríspidos. Escolheram uns cinco pretos e os mandaram descer. Jeferson, antes que o ônibus arrancasse, as mãos espalmadas no muro, o corpo aguardando o baculejo, sentiu revolta. Não era a primeira vez, não tinha nada a esconder. “Sou trabalhador, estou indo pra casa.”

Quase uma hora depois, ao subir no ônibus, ainda tremia. Sabia perfeitamente os porquês. Nenhum branco foi obrigado a descer nem foi humilhado no meio da rua. O olhar da turma do espetinho do outro lado da rua era ambíguo. Uns pareciam concordar, outros se levantaram esboçando alguma indignação. Mas ninguém falou nada. Nada.  

Subindo a rua, pediu licença à turma e se sentou na pedra, ensimesmado, a cabeça enterrada nos braços cruzados. A galera calou. Seu tormento era evidente e o clima foi de respeito. Jeferson não tinha ódio, rancor ou desejo de vingança.

Não era culpa daqueles policiais, peças de uma máquina perversa de matar pretos e pobres. Apenas faziam parte da engrenagem. Sentiu, porém, uma profunda revolta. Tinha claro para si a perversidade do ódio e de que seu coração era incapaz de tanto. Conhecia aquele veneno e não iria prová-lo, tinha fé.

Sentia raiva. Aquilo não era certo nem justo. Levantou o rosto e observou um por um. Eram uns seis perto da pedra. Alguns companheiros das peladas de infância. Nenhum disse palavra. Jeferson viu revolta nos olhos deles, viu delírio e, em dois, ambição. Quando teve certeza que não havia ódio ali, desculpou-se por qualquer coisa, seguiu ladeira acima e foi dormir. Não sonhou.

De manhã, desceu a rua e a pedra estava lá. A turma também. No estômago, o nó foi menos doído. Jeferson não fazia ideia, mas sua revolta era uma semente que brotava daquela pedra.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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