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Reflexão sobre a liturgia do 4º Domingo da Páscoa - Jo 10,11-18
É o cuidado que nos faz sensíveis e nos compromete com quem está à nossa volta. (Jaka krlep/ Unsplash)
Por Adroaldo Palaoro*
'Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas' (Jo 10,11)
A partir deste 4º. Dom de Páscoa, a liturgia se afasta dos relatos das aparições do Ressuscitado, mas não sai do tema pascal. Como Bom Pastor, o mandato que Jesus recebeu do Pai é “dar a Vida” e a disposição em “dar a Vida” está profundamente sintonizada com o tempo de Páscoa que estamos celebrando.
A raiz da experiência pascal é que Jesus está vivo e comunica Vida à comunidade. Como os primeiros cristãos, também nós temos o mesmo privilégio de fazer nossa essa Vida. Trata-se da mesma Vida de Deus, de seu Amor que se entrega a nós incondicionalmente.
Crer e anunciar a Ressurreição é confiar na vida que morre, para dar lugar a mais vida, a Vida maiúscula. É crer vivencialmente que a morte é necessária para que a corrente da vida flua, e nos comunique suas maiores riquezas. A vida (minúscula) morre; para sermos fiéis ao chamado à Vida, devemos ser capazes de abandonar o que já não serve, o que é caduco, o que precisa morrer, para que a vida siga seu curso em direção à plenitude.
Somos também chamados a proclamar que a Vida é possível, que há algo mais além da vida limitada e frágil; somos movidos a gritar pelos caminhos que a morte foi vencida, que o ser humano é e continua sendo filho amado de Deus, chamado à vida maior e à liberdade.
Viver a Páscoa significa apostar pela qualidade de vida, fugindo da mediocridade sonífera na qual muita gente se instala, vivendo uma existência rotineira e normótica, sem cor e sem sabor, correndo sem saber para onde, sem entusiasmo, sem dinamismo e sem poder dar cor à própria vida, à família, ao trabalho, ao descanso, às relações, à fé...
O sintoma mais doloroso, já constatado por sérios analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar que afeta a humanidade inteira. No fundo, essa crise generalizada revela seu rosto desfigurado no fenômeno do “descuido”, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado com que são tratadas realidades importantes da vida.
Tudo o que existe e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um animal, uma criança, um idoso, o planeta Terra...
É urgente uma práxis de cuidado, de re-ligação, de benevolência, de paz perene para com a Terra, para com a vida, para com a sociedade e para com o destino das pessoas, especialmente das grandes maiorias empobrecidas e condenadas da Terra.
Jesus foi um “homem-de-cuidado” e deixou aos seus seguidores um estilo de vida fundado no cuidado. A imagem do “Bom Pastor” revela esse modo de ser e proceder de Jesus.
Trata-se de uma imagem que, para os nossos contemporâneos, revela-se, ao mesmo tempo, anacrônica e pe-rigosa. Anacrônica, porque as cenas do pastor cuidando do rebanho desapareceu do universo majoritaria-mente urbano e desenvolvido. Perigosa, porque a imagem do rebanho apresenta resquícios de passividade que a consciência moderna rejeita visceralmente, por evocar o binômio poder/submissão.
Embora a imagem tenha ficado esvaziada, seu conteúdo continua sendo plenamente atual, quando realçamos a atitude pascal da “mística do cuidado”, ou seja, quando proclamamos a atitude de entrega aos outros até o final. Jesus, em seu ministério “cuidador” transformou a vulnerabilidade em possibilidade, a fraqueza em força, a dor em alegria... O evangelista Marcos diz com extrema finura: “Ele fez bem todas as coisas; fez surdos ouvir e mudos falar” (Mc. 7,37).
Sua presença e sua intervenção nos revelam o compromisso com a vida, a afirmação da dignidade e da sacralidade de cada pessoa, bem como a reintegração dos excluídos na comunidade humana. Jesus é um bió-filo (amigo da vida), pois revela uma especial atenção e zelo pela vida, seja da natureza, seja do ser humano. Cada vida é um cenário de manifestação do Pai. Tudo lhe causava admiração e encantamento.
Para Jesus, a cada dia o Pai chama as criaturas pelo nome e as convoca à vida: as águas fluem, os animais procriam, os astros retomam seu curso e o ser humano acorda para o louvor de Deus e o cumprimento de suas tarefas. Pela ação providente e cuidadosa do Pai, a Criação inteira se refaz de crepúsculo em crepúsculo e de aurora em aurora.
Nesse tempo pascal, o cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador para um novo tempo de convivialidade. Diante das realidades vulneráveis faz-se necessário despertar as consciências para a prática do cuidado.
O cuidado é algo mais que um ato ou uma virtude entre outras; ele se encontra na raiz primeira do ser humano, é um “modo-de-ser essencial” do ser humano.
É uma dimensão fontal, originária, primária, impossível de ser totalmente esvaziada.
É o cuidado que nos faz sensíveis e nos compromete com quem está à nossa volta.
É o cuidado que nos une às criaturas e nos envolve com as pessoas.
É o cuidado que desperta encantamento face à grandeza do firmamento, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido.
Pelo cuidado, o ser humano se religa ao mundo afetivamente, responsabilizando-se por ele.
Jesus de Nazaré foi aquele que mais encarnou o “modo-de-ser-cuidado”.
Revelou à humanidade o “Deus-Cuidado”, experimentando-o como Pai/Mãe que cuida de cada um(a) de seus(suas) filhos(as), do alimento dos pássaros, do sol e da chuva para todos.
Jesus resgatou a centralidade do cuidado e da ternura para com todas as manifestações da vida. Ele mostrou cuidado especial com os pobres, os famintos, os discriminados e os doentes.
Pelo cuidado, Jesus maravilhou-se diante do milagre da vida e solidarizou-se com os humanos fragilizados e excluídos. As parábolas do bom samaritano, que mostra a compaixão pelo caído na estrada, a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai, e, sobretudo, a do Bom Pastor, são expressões exemplares de cuidado e de plena humanidade.
Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrar-nos de nós mesmos e sair em direção ao outro, sentir o outro como outro, participando da sua existência; cuidar é mais que um ato; é uma atitude “kenótica”, porque exige o esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério do outro encontrar abrigo em nosso coração. “Não temos cuidado; somos cuidado”. Sem cuidado deixamos de ser humanos.
É a partir do cuidado que colocamos limite a toda voracidade neurótica de ter e poder; a partir do cuidado acontece a passagem da lógica da conquista para a lógica da gratuidade, da imposição para a interação-comunhão, da exploração para a sintonia-cordialidade, do poder-produção para a atenção-respeitosa.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos também cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: pedir a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção e a cura das mãos benditas e providentes de nosso Deus;
- alargar o coração, para que aí a ternura de Deus possa fazer morada.
- está sua vida cheia de Vida e de Cuidado?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
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