sexta-feira, 13 de abril de 2018

'O papa é comunista!': a afirmação dos acomodados

domtotal.com
Cristão indiferente ao pobre não é cristão
O que o papa pede, na verdade, é que além da caridade 'institucionalizada', ela também seja colocada em prática pelo cristão comum.
O que o papa pede, na verdade, é que além da caridade 'institucionalizada', ela também 
seja colocada em prática pelo cristão comum. (Reuters)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

“A igreja Católica é a maior instituição de caridade do mundo”. Muitas páginas católicas, inclusive, têm replicado isso. De acordo com o último anuário pontifício, publicado em 2017, estima-se que só a Igreja católica esteja à frente de mais de 115 mil centros de educação, saúde e assistência em todo o mundo. Porém, por que o Papa Francisco faz um apelo tão forte à solidariedade se a Igreja já faz tanto pela humanidade? Como vimos, é incontestável que o catolicismo já faz um trabalho consistente voltado aos mais necessitados. No entanto, isso não quer dizer que a maioria dos católicos nutram esse espírito caritativo e altruísta que motivou os primeiros cristãos a escreverem exortações e tratados sobre os pobres que faziam parte da Igreja primitiva. Na Didaché, um importante documento da literatura sub apostólica, escrito provavelmente no século I, a exortação é clara:

“Não rejeite o necessitado. Compartilhe tudo com seu irmão e não diga que as coisas são apenas suas. Se vocês estão unidos naquilo que é imortal, tanto mais estarão unidos nas coisas perecíveis”.

Ainda de acordo com anuário pontifício, são 1 bilhão e 200 mil os católicos batizados em todo o planeta. E é justamente a cada um desses batizados que o pontífice argentino dirige o seu apelo. O que o papa pede, na verdade, é que além dessa caridade “institucionalizada”, ela também seja colocada em prática pelo cristão comum que diz professar a religião a qual, desde a sua fundação, não é chamada simplesmente a fazer a caridade, mas a transformar os seus seguidores em homens e mulheres de caridade e promotores da mesma. Se nos remetermos aos primórdios do cristianismo e a outras épocas da história, veremos que a igreja não somente atuou em prol dos necessitados, mas colocou-os no centro de sua ação pastoral. Na Apologia de Aristides, um outro importante documento cristão do século II, o autor do texto explica qual seria o “distintivo do cristão” e o que diferenciaria dos demais homens de bem. Para o escritor, confirmando a citação da Didaché, citada acima, a caridade é um transbordar da fraternidade gerada pela mesma profissão de fé:

“Não desprezam a vida, não desamparam o órfão. Os que têm compartilham abundantemente com os que não têm. Se vêem um forasteiro, o acolhem sob seu teto e se alegram com ele como um verdadeiro irmão, pois não se chamam irmãos segundo a carne, mas segundo a alma”.

Sendo assim, já era hora de um papa trazer novamente à tona a consciência de que o pobre não somente deve ser assistido, mas integrado à comunidade cristã. Se um Leão XIII ou um João XXIII, que com suas encíclicas sociais quiseram dar uma resposta teológica às revoluções sociais que se manifestavam em todo o mundo, Francisco deseja, com seu pontificado, agir concretamente diante das injustiças sociais que certamente seriam amenizadas se os cristãos assumissem sua própria vocação. 

Em outras palavras, o pontífice quer mostrar que é muito fácil fazer caridade doando uma certa quantia de dinheiro a alguma instituição, o difícil é “tocar a carne de Cristo” nos pobres que se encontram jogados às portas das nossas casas, nas escadarias das nossas Igrejas e nos lixões desumanos que muitas vezes fazem com que muitos questionem onde estariam os cristãos que dizem professar a religião da solidariedade. O pontificado de Francisco, como um todo, é orientado pelo desejo de “desinstitucionalizar” o católico. Isso não quer dizer que ele não considere o valor da instituição como tal,  mas espera que cada fiel trate a instituição como espaço de nutrimento do espírito caritativo que deve se manifestar para além dela. O discurso de Francisco incomoda porque convida aquele que o escuta a libertar-se desse “comodismo institucional”, do “clericalismo” que transforma o cristão em um exímio devoto da instituição, mas, muitas vezes, indiferente diante daqueles que mais sofrem.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

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