quinta-feira, 12 de abril de 2018

Um Deus sem Cristo, uma fé sem amor, um país de gnósticos e pelagianos

domtotal.com
A santidade é incompatível com o individualismo e o dogmatismo.
A santidade é buscar a justiça com fome e sede.
A santidade é buscar a justiça com fome e sede. (Reprodução/ Pixabay)
Por Élio Gasda*

Gaudete et exsultate (Alegrai-vos e exultai) é o texto mais importante sobre a santidade desde o Concílio Vaticano II. Papa Francisco oferece uma visão realista do que é ser santo. Ninguém se salva sozinho. A santidade não é privilégio de um grupo, de uma elite eclesial. Ser santo não significa revirar os olhos em êxtase ou derramar-se em prantos diante do Santíssimo, ter visões extraordinárias, ser frequentador assíduo de vigílias, retiros e peregrinação. Ser santo não é coisa de bispo, sacerdote ou freira. A santidade é incompatível com o individualismo e o dogmatismo.

Muitos cristãos deixam-se seduzir pelo gnosticismo e o pelagianismo, duas heresias enganadoras. Sua segurança disciplinar gera um elitismo narcisista e autoritário ocupado em classificar os outros. Jesus Cristo não os interessa verdadeiramente. O gnosticismo pressupõe uma fé fechada, na qual a pessoa fica enclausurada na sua própria razão e sentimentalismo. Julga os outros segundo sua própria compreensão da religião. São incapazes de tocar a carne sofredora de Cristo no pobre. Preferem um Deus sem Cristo. São superficiais, não se movem nem se comovem. É uma das piores ideologias, pois considera como verdadeira apenas sua visão da realidade. Com o tempo, torna-se ainda mais cega. No pelagianismo, o poder é atribuído ao esforço pessoal. Sentem-se justificados pelas suas próprias forças, são egocêntricos e elitistas. Desprovidos do verdadeiro amor, tem obsessão pela lei, fascínio de exibir conquistas sociais, ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja. Dão total importância à observância de certas normas e costumes. Quando alguém tem resposta para todas as dúvidas, é possível que seja um falso profeta.

Como ser um bom cristão? A resposta é simples: fazer aquilo que Jesus ensina nas Bem-aventuranças. A palavra bem-aventurado é sinônimo de santo: ser pobre, reagir com humilde e mansidão, entristecer-se com os entristecidos, buscar a justiça com fome e sede, olhar e agir com misericórdia, manter o coração limpo de tudo o que impede o amor ao próximo, promover a paz, sofrer perseguição por causa da justiça. Ou seja, viver na contracorrente do que ensina a sociedade. O “santo” é uma presença crítica, questionadora. Incomoda, é perigoso aos ricos e poderosos.

É um erro suspeitar do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, comunista, populista. A defesa do nascituro deve ser clara, firme e apaixonada. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas situações de escravatura e em todas as formas de descarte. Considerar estes temas como secundários não é ser cristão.

Francisco insiste na necessidade da santidade em todas as esferas, inclusive nas redes: Pode acontecer que os cristãos façam parte de redes de violência verbal na internet e fóruns digitais. Mesmo na mídia católica é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia, excluindo a ética e respeito da reputação alheia. Procura-se compensar as insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. Ao ignorar o oitavo mandamento: ‘Não levantar falsos testemunhos’, destrói-se sem piedade a imagem alheia. A língua descontrolada é um mundo de iniquidade, inflamada pelo inferno. Jesus, recorda Francisco, não disse: ‘Felizes os que planejam a vingança’, mas chama felizes aqueles que perdoam e o fazem ‘setenta vezes sete’.

Gaudete et exsultate, poder financeiro-industrial-midiático! Somos um país dominado por gnósticos e pelagianos. O mundo presenciou mais um show miditático da desgraça brasileira. O poder Judiciário, as forças armadas e a mídia hegemônica, unidos em torno de uma obsessão: encarcerar um ex-presidente da República (enquanto outros estão “ao abrigo da lei” - Sérgio Abranches). A manobra revelou o grau de enfermidade institucional que está destruindo o país: supressão da democracia, Estado de Exceção, negação da garantia dos direitos civis, ascensão do fascismo, Judiciário esfacelado. Acovardadas, algumas figuras fantasiadas de magistrados, não resistem à mídia opressiva e aos fascitóides das ruas (Gilmar Mendes). E assim foi: “com Supremo com tudo” (Romero Jucá). Rasgou-se (mais uma vez) a Constituição Federal. Uma guinada mais autoritária via golpe militar ainda está descartada. Quem ganha? Os ricos, os de sempre.

Sem limites morais e legais, o capitalismo financeiro destruiu o Estado de Direito e a justiça. A possibilidade de democracia acabou. A eleição, se acontecer, será uma farsa. A podridão desse esquema mantido por uma elite autoritária não tem prazo de validade. A extrema direita impõe a preocupante radicalização da política do ódio. A violência foi institucionalizada para que alguns poucos desfrutem da riqueza. A fome voltou, a desigualdade social se aprofunda, o desemprego avança. Tudo isso em um país onde 86,8% da população (IBGE) diz, grita que ama a Jesus. Mas não será o Jesus das bem-aventuranças.

A santidade é buscar a justiça com fome e sede. É o amor plenamente vivido. “Quem ama o próximo cumpre plenamente a Lei” (Rm 13,10). E toda a Lei se resume neste único preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Gal 5,14).

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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