quarta-feira, 9 de maio de 2018

Sabedoria de beira de rio

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Era bonito vê-lo descrever, com detalhes e maneios, como deixar a isca viva no anzol, amarrada à linha na forquilha de ingazeira.
Traque discorreu sobre inúmeras técnicas de pesca.
Traque discorreu sobre inúmeras técnicas de pesca. (Asundermeier / Pixabay)
Por Pablo Pires Fernandes*

“A tarrafa tem todo tipo de jogar. Se não souber jogar ela, apanha. Se pegar ela de qualquer jeito, ela roda e embaralha. Aí, a pessoa vai e apanha até conseguir jogar ela direito. Aí a pessoa começa queimando de todo lado: lado direito, lado esquerdo. É tipo uma dança de folia. Já viu uma dança de folia, quando tem a mulher com aquele saião redondo e começa a rodar? A tarrafa é igualzinho, igualzinho à tarrafa. Quando fica batendo o chão na beira do rio e você vê aquele toque e a roda daquela saia, é o mesmo tom de uma jogada de uma tarrafa.”

Aquela poesia genuína, dita em tons de voz enfáticos, tornavam a narrativa mais do que um simples relato. Traque – era seu nome de guerra – movimentava o corpo com tal expressividade que toda a cena me provocou as mais esdrúxulas associações. Pensava em teatro, cinema, em Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, afinal, aquilo era algo mais do que um simples relato.

Era mais de meia-noite e, diante do bar, ele, garçom, observava atento o movimento dos poucos clientes enquanto me descrevia os peixes que costumava pescar nas águas do Rio São Francisco, na Pirapora de sua infância. Surubim, pintado, cascudo. “O peixe mais valioso do São Francisco se chama ‘pocomã’ (pacamã). É a carne mais gostosa que tem no rio e é o peixe mais feio também.”

Traque discorreu sobre inúmeras técnicas de pesca, assunto sobre o qual esbanjo ignorância. Falou sobre os lugares certos para lançar a tarrafa e como fazia para pescar com linhada na ponte de Marechal Hermes. Era bonito vê-lo descrever, com detalhes e maneios, como deixar a isca viva no anzol, amarrada à linha na forquilha de ingazeira. “Era ingá”, respondeu, explicando: “A ‘gaia’ enverga, fisga e fica balançando até o peixe cansar. Dia seguinte, é só puxar a linha”.

Perguntei-lhe sobre a relação com a fé. Em sua sabedoria cabocla, a resposta foi naturalmente muito brasileira: “A gente agradece a Deus, a São Jorge, ao Caboclo D’Água e a São Expedito”. Não soube me responder se a devoção ao santo das causas urgentes era particular daquele trecho do São Francisco ou se o dito era evocado pelos pescadores em outras paragens.

De todos os inenarráveis casos ouvidos, sobressaiu um. Sempre com os braços em movimento, Traque me contou: “Estava tendo uma viração de peixe, aquele cardume subindo a cachoeira. Eu era pequeno, fugia de casa andando de bicicleta escondido da minha avó, andava a cidade toda. Mas parei e olhei as pessoas pegando os peixes e fui lá. E peguei na mão, um monte. E, quando subia o barranco, apareceu um homem e comprou um peixe na minha mão”.

Fazia pausas e criava suspense como bom contador de casos que é. “Puta merda, como vou fazer para chegar em casa com esse dinheiro na mão?.” Chegou e entregou as notas enroladas à avó, tímido, mas não escapou do inquérito severo do avô: “Onde arrumou isto?”. Falou a verdade, trêmulo. A certeza, o avô só teve ao ouvir a mesma história dita por um compadre. Traque gastou o resto das notas na mercearia de seu Américo, comprou arroz e feijão. Na manhã seguinte, o menino saiu para pescar e a avó, no portão, lhe desejou boa sorte e lhe abençoou.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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