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A rua, a urbe, a estrada nos lembra que somos corresponsáveis pela vida dos outros.
A pessoa humana é, como diziam os cristãos medievais, um homo viator: um ser que viaja, que se desloca, que peregrina. (Reprodução/ Pixabay)
Por Javier Celedón Meneghello*
Há poucos dias tive que fazer uma longa viagem de ônibus: várias horas de estrada, silêncio e tempo para ler, ouvir música e meditar. Durante a viagem, vi centenas de carros passando ao meu lado, vários motoristas e passageiros se deslocando para lugares que desconheço. Esta cena cotidiana (ver pessoas dirigindo é tão habitual e corriqueiro para nós que vivemos em cidades) me trouxe várias reflexões, e como “o dirigir” ou “o se deslocar” pode ser um momento fecundo para nutrir nosso espírito.
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Uma primeira constatação: somos pessoas “em deslocamento”. Desde os primórdios da humanidade, nossos primeiros antepassados se diferenciaram dos animais pela capacidade de buscar novos e melhores horizontes. Desde então, a vida humana se caracteriza por, entre outros aspectos, estar em constante movimento. A pessoa humana é, como diziam os cristãos medievais, um “homo viator”: um ser que viaja, que se desloca, que peregrina.
Uma segunda reflexão: aquele que dirige sempre tem um “destino final”. Seja o trabalho, a casa ou outro lugar, quem pega o volante antecipa-se mentalmente e projeta para onde vai. Isto me lembrou de Santo Inácio de Loiola, que dizia que um elemento fundamental da vida espiritual é saber “aonde vou e a que”. E isto aplica-se tanto às perguntas fundamentais da vida (qual o sentido da minha vida? A que estou chamado?) como a suas concretizações cotidianas (o que faço para viver meu chamado? Como escolho viver minhas relações afetivas e laborais? Que meios coloco para viver minha vocação?).
Uma terceira reflexão: às vezes conhecemos o destino final de nossa viagem, mas durante o percurso aparecem imprevistos e dificuldades que atrapalham nosso deslocamento. Existe alguém que não tenha pego algum acidente que faz o trânsito ficar pesado, ou uma chuva que dificulta a visão, ou um buraco que estoura um pneu? Nesses momentos, que importante é ser paciente e saber que nossa vida está feita, também, desses percalços, e que não somos “uma linha reta”! Como disse a mineira Adélia Prado: “demoro a aprender que a linha reta é puro desconforto. Sou curva, mista e quebrada: sou humana”.
Uma quarta e última meditação: nesta estrada que é a vida não estamos sozinhos. Apesar da tendência à individualidade que o neoliberalismo quer cultivar em nós, nas ruas sempre estamos “com outros”. Somos constantemente lembrados de que devemos respeitar as normas do trânsito e precisamos estar atentos para não bater em outros e evitar acidentes. Desta situação negativa (“não ultrapasse com sinal vermelho”; “não dirija sob o efeito do álcool”; “não dirija na contramão”) pode surgir uma leitura positiva: estamos na vida com outros. Não somos seres isolados e desconectados. A rua, a urbe, a estrada nos lembra que somos corresponsáveis pela vida dos outros. E para nós, que somos cristãos, não se trata só de respeitar e fazer o mínimo (“não faças aquilo que não quer que façam contigo”), mas de viver o máximo (“amem a seus inimigos como eu vos amo”).
*Javier Celedón Meneghello é licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia e mestrando em Sociologia e Antropologia pela UFRJ
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