segunda-feira, 9 de julho de 2018

Vejam as minhas mãos e os meus pés!

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Aquele mesmo Jesus que caminhava pela Palestina, anunciando com palavras e obras o Reino, é o que foi plenamente assumido na vida de Deus, participando da glória divina.
Com a capacidade de amar as nossas próprias marcas, seremos também capazes de olhar com empatia para o rosto do outro
Com a capacidade de amar as nossas próprias marcas, seremos também capazes de olhar com empatia para o rosto do outro (Free Bibles)
Por Felipe Magalhães Francisco*

As narrativas das manifestações do Ressuscitado, em meio aos discípulos, carregam sempre marcas literárias de uma teofania: a reação das personagens que acompanham as manifestações é sempre de espanto, medo, pavor. Mesmo diante da saudação pascal – A paz esteja convosco! – os discípulos se tomam do terror sagrado. Sem dúvidas, essa é uma experiência mística pela qual passaram as primeiras testemunhas do encontro com o Ressuscitado.

Chamo a atenção, no entanto, para uma fala de Jesus, trazida pelo evangelista Lucas, para apaziguar o coração dos discípulos: “Vejam as minhas mãos e os meus pés! Sou eu mesmo!” (Lc 24,36). A identificação precisa ser imediata: aquele que havia sido crucificado é o que foi ressuscitado! O Crucificado é o Ressuscitado! Aquele mesmo Jesus que caminhava pela Palestina, anunciando com palavras e obras o Reino, é o que foi plenamente assumido na vida de Deus, participando, definitivamente, da glória divina. À direita do Pai, Jesus é plenamente humano, carrega as marcas de sua história.

Vejam as minhas mãos e os meus pés! Vejam as marcas da minha história! Fico lembrando da canção que diz que fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas. Recordo, ainda, que as narrativas sempre apontam para o fato de que aqueles e aquelas que foram chagados com as marcas do Crucificado em seus corpos, exalavam o cheiro de flores. Como, a memória de algo tão trágico, como a Cruz de Jesus, pode carregar e exalar perfume? Há alguma sabedoria, para nós, nisso?  

Há quem não se reconcilia com o passado, por uma série de questões e dificuldades. Mas esse processo de reconciliação com nossa própria história, por mais dolorosa que seja, é importante se queremos viver com qualidade. Nós somos aquilo que nossa história nos moldou. E podemos nos tornar melhores, tudo aquilo que somos chamados a ser, se aprendemos a carregar, sem dor, as marcas que nosso corpo traz. A reconciliação com a própria história é possibilidade de continuação dessa própria história, de uma maneira consciente, autônoma. Isso também diz respeito à espiritualidade: conhecer a própria história de modo consciente e encontrar sentido para a vida, nessa história.

O Ressuscitado mostra suas mãos e seus pés, com as marcas do horror que vivenciou. Horror, este, que, no entanto, torna-se um gesto impressionante de amor e doação: ele carrega as marcas de uma vida doada, entregue, porque movida sempre no e em direção ao amor. Não podemos mudar o passado, bem sabemos, mas ignorá-lo ou carregá-lo de maneira amargurada não faz com que deixe de existir ou de nos influenciar. É preciso que nos reconciliemos com as marcas que a vida nos deixou, para que construamos a história presente e futura, portando nas mãos o perfume das flores. E isso pressupõe a consciência de que só reconciliados com o passado, com aquilo que nos fizeram e com a forma com a qual nos moldaram, é que seremos senhores e senhoras de nós mesmos.

Mais que isso: com a capacidade de amar as nossas próprias marcas, seremos também capazes de olhar com empatia para o rosto do outro, que também carrega marcas de uma história que provavelmente desconhecemos. E que isso também nos sensibilize para a solidariedade para com aqueles e aquelas que são crucificados na história, de tantas e tantas maneiras injustas.

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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