sábado, 4 de agosto de 2018

As suas mãos

domtotal.com
Um amor simples, incomparável, o único que atravessa as portas do infinito.
Marco Lacerda
Marco Lacerda (Reprodução)
Por Marco Lacerda*

Eram assim suas mãos: amizade e amor. Através delas, desde menino, eu lia e entendia o mundo. Guiado por elas, sempre sabia onde ir e nunca errava o caminho. Mesmo quando a discórdia invadia o seu lar, ao contrário de outras mãos, as suas permaneciam enlaçadas uma à outra, suavemente pousadas no colo.

Me encantava observar a ternura quase sobrenatural com que suas mãos tocavam os objetos, as coisas, como se tivessem um acordo íntimo com elas e por isso sabiam que as coisas amam serem vistas e tocadas pela alegria singela de serem vistas e tocadas em vez de viverem no esquecimento de serem vistas apenas mas raramente acariciadas como você fazia.

Era no tocar nos canarinhos dentro de suas gaiolas que suas mãos expressavam seu dom supremo. Eles nunca se afastavam delas assustados, para se proteger. Ao contrário, se entregavam a suas carícias. Eram só dez, mas, quando cresciam, cantavam como se fossem mil para você escutá-los de onde estivesse e assim, com sua cantoria, encantavam todo o quarteirão onde morávamos.

Só nos jogos do Barcelona suas mão se transformavam. Contorciam-se apertadas uma contra a outra. Sofriam, vibravam com los azulgranas. Conheciam de cor os nomes de todos os jogadores, só porque sabiam que o Barça é o meu time do coração.

Revejo agora sua mãos inertes neste leito de hospital, sofridas, marcadas, dilaceradas pelas picadas de agulhas de médicos e enfermeiros que tentam salvá-las, como se, salvando uma flor, o jardim inteiro estivesse salvo. Já não há tempo nem forças sequer para um adeus final.

*Marco Lacerda é jornalista, escritor, editor-especial do Domtotal.com. E filho de Dora.

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