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Mas a migração não é somente um problema político e social. Para o cristão, é um problema ético e religioso.
Abrigo Rondon 1, em Boa Vista, que recebeu cerca de 100 venezuelanos vindos da cidade de Pacaraima de 20 a 22 de Agosto de 2018. (Marcelo Camargo/Ag Brasil)
Por Élio Gasda*
Migrar é um direito humano. O Brasil é um país de migrantes. Milhares de brasileiros tem o pai, os avós ou bisavós, vindos de algum outro país do mundo. A nação é formada por descendentes de poloneses, ingleses, italianos, libaneses, alemães, angolanos, japoneses. O Brasil sempre pareceu acolhedor. Denúncias de xenofobia eram pontuais. Isso até o último sábado (18-08) quando dezenas de venezuelanos foram atacados por brasileiros em Pacaraima (Roraima). Famílias inteiras, absolutamente pobres, crianças de colo que não tem para onde ir tiveram seus barracos, roupas e documentos queimados.
Medo, fome, noites ao relento e trabalho escravo: Assim é a vida dos venezuelanos na fronteira do Brasil. Venezuela vive uma crise econômica e social sem precedentes. Muitos cruzam a fronteira em busca de comida, remédios e trabalho. Entre os imigrantes mais vulneráveis estão os indígenas da etnia warao. Em 2017, segundo a Polícia Federal, mais de 70 mil venezuelanos entraram no Brasil apenas por Roraima.
Emancipado em 1995, Pacaraima nasceu de uma invasão à reserva indígena São Marcos. Conta com pouco mais de 12 mil habitantes. A energia elétrica e a gasolina vêm da Venezuela. Sem venezuelanos o comércio pode fechar as portas. Quase 100 taxistas cruzam a fronteira no leva e traz de pessoas e produtos. A política é comandada por latifundiários invasores das terras indígenas incentivadores da xenofobia. Os agressores são sempre os mesmos: atacaram a sede da Funai e pagam jagunços para matar índios. "Maldito o que aceita gratificação para levar à morte o inocente!" (Dt 27, 25).
A barbárie sofrida pelos venezuelanos evidencia a falta de políticas públicas para acolhimento, a burocracia na obtenção dos documentos e, o mais triste, a discriminação e o desrespeito à pessoa humana. Mas a migração não é somente um problema político e social. Para o cristão, é um problema ético e religioso. O próprio Jesus, nascido pobre e indefeso, foi perseguido, ainda criança, por Herodes (Mt 2,13) migra para refugiar-se no Egito. “Meu pai era um arameu errante” (Dt 26,5b). Assim começa o Credo de Israel, um povo migrante em toda a sua existência.
O nome “hebreus” equivale a migrantes. Abraão, o pai da fé, primeiro a fazer a experiência emigratória: “Sai da tua terra e vai para a terra que te mostrarei” (Gn 12,1-2), se identificava como “um simples forasteiro que vive entre vós” (Gn 23,4). Seus descendentes também foram emigrantes. Jacó e seus filhos emigraram para o Egito (Gn 46,1-7). A norma é inquestionável: “O Estrangeiro que habita convosco será para vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo” (Lv 19,34).
Um Deus acolhedor: “Acolhei-os unos aos outros, como o Cristo vos acolheu, para a glória de Deus” (Rm 15,7). O primeiro dever de um ser humano diante de um migrante é o acolhimento. A acolhida não é um favor para quem não tem mais para onde ir. É uma questão de justiça. Acolher é fazer justiça ao migrante. “EU era estrangeiro e não me acolheste” (Mt 25, 43). Papa Francisco quer uma Igreja de portas abertas (Evangelii gaudium, 46). A realidade dos migrantes exorta aos cristãos e países a uma abertura generosa (EG, 210). Acolher com afeto os imigrantes tal como esperam ser acolhidos (EG, 253) é viver a regra de ouro: “Tudo aquilo que quereis que os outros vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12).
Diante destes nossos irmãos que fogem das guerras, das perseguições, dos desastres naturais e da pobreza, Papa Francisco apresenta quatro exigências morais: acolher, proteger, promover e integrar. Oferecer a eles as possibilidades mais amplas de entrada segura nos países de destino; promover ações em defesa dos direitos e da dignidade dos migrantes e refugiados, independentemente da sua situação (Mensagem para o dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 2018).
“Já não há judeu nem grego. Todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal 3, 28). Toda pessoa faz parte da grande família humana. Todos têm direito de viver com dignidade dentro de seu próprio país. Quando isso não é possível, tem o dever de buscar sua sobrevivência em outro território (Gn 12,1; Gn 47,4-6). Migrantes e refugiados “não chegam de mãos vazias: trazem uma bagagem feita de coragem, capacidades, energias e aspirações, para além dos tesouros das suas culturas nativas, e deste modo enriquecem a vida das nações que os acolhem. Todos conformam uma só família, migrantes e populações locais que os recebem. Todos têm o mesmo direito de usufruir dos bens da terra, cujo destino é universal, como ensina a doutrina social da Igreja” (Papa Francisco).
Já são mais de 232 milhões de migrantes no mundo, pessoas que foram forçadas a abandonar seus lares em busca de melhores condições de vida, por causa de conflitos armados, pela violência generalizada ou por desastres naturais. Este mundo é nossa casa comum. Malditas todas as fronteiras que nos impedem sermos humanos e viver como irmãos. Somos todos imigrantes. “Maldito o que viola o direito do estrangeiro” (Dt 27,19). Porque “Deus ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa” (Dt 10,18).
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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