terça-feira, 18 de setembro de 2018

Não é suficiente virar a página. A vida deve ser renovada

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Semanas depois encontro privado entre o papa Francisco e os jesuítas na Irlanda, divulgada a transcrição da reunião.
Antes de sair, Francisco saúda alguns dos jesuítas idosos em cadeiras de rodas na primeira fila.
Antes de sair, Francisco saúda alguns dos jesuítas idosos em cadeiras de rodas na primeira fila. (Vatican Media)
Por Antonio Spadaro*

Em 25 de agosto, durante a sua visita à Irlanda para o Encontro Mundial das Famílias, o papa Francisco se encontrou com um grande grupo de jesuítas da Irlanda. A reunião estava programada para as 18h20, mas o papa escolheu prolongar sua reunião privada com um grupo de oito vítimas de abuso sexual, uma reunião que durou uma hora e meia. Por volta das 18:40, Francisco entrou numa sala da Nunciatura onde 63 jesuítas estavam reunidos. Entre eles estavam dois bispos: Alan McGuckian, bispo de Raphoe (Irlanda), e Terrence Prendergast, arcebispo de Ottawa. O pe. John Dardis, Conselheiro Geral da Companhia de Jesus para o discernimento e planejamento apostólico, também estava lá. Três jesuítas irlandeses são agora membros da província da Zâmbia-Malauí e um vive no Sudão do Sul. Três jesuítas em formação vieram dos Estados Unidos, Canadá e Camarões.

O Provincial, Leonard A. Moloney falou primeiro, dando as boas-vindas em nome de todos: "Santo padre, papa Francisco, em nome dos jesuítas irlandeses, digo-vos: Céad míle fáilte! Esta é a costumeira expressão irlandesa de boas-vindas e significa "cem mil boas-vindas." Damos as boas-vindas a você como irmão em Cristo e filho de Santo Inácio". Moloney continuou e agradeceu por esse encontro “íntimo e informal”, apesar da agenda ocupada do papa. Em particular, ele disse: “agradecemos por sua profunda fé em Jesus Cristo, como o rosto misericordioso e amoroso de Deus, nosso Pai. Você apresenta a fé como algo atraente em um momento difícil”.

Pe. Moloney falou sobre o compromisso de “promover a compreensão da liberdade, o discernimento e o acompanhamento espiritual”. Francisco solicitou este compromisso dos jesuítas muitas vezes durante suas viagens apostólicas, como La Civiltà Cattolica sempre relatou. O provincial, referindo-se aos presentes, disse: “Como você pode ver, nós não somos tão jovens - você é um dos mais jovens neste grupo! - e pedimos que você ore pelas vocações. Esta província tem muita coragem e desejo de servir e amar em todas as coisas. Escutamos esta semana o seu chamado para a oração e o jejum e fazer todo o possível para erradicar o mal do abuso dentro da Igreja”.

O provincial conclui então as suas boas-vindas: “Mais uma vez, Santo Padre, mil vezes obrigado por estar aqui, por nos acompanhar neste caminho, e especialmente pela alegria, o humor e a serenidade com que carrega o peso de sua liderança. Tenha a certeza de nossas orações e saiba que estamos aqui para apoiá-lo em todas as suas necessidades, para que você possa cumprir sua missão com paz e coragem!”.

Então Francisco começou a falar: "Muito obrigado! Lamento que nossa reunião seja tão apressada. Estou atrasado e logo tenho que ir ao encontro das famílias. Existe um cronograma preciso que tenho que respeitar. Em primeiro lugar, lamento ter esquecido todo o inglês que aprendi no Milltown Park tantos anos atrás, quando vim para a Irlanda pela primeira vez. Não estou à vontade falando em inglês. Deve ser um limite psicológico! Mas muito obrigado.

Por que estou atrasado? Porque eu tive uma reunião com oito sobreviventes de abuso sexual. Eu não sabia que na Irlanda também havia casos em que mulheres solteiras tiveram seus filhos tirados delas. Ouvir isso particularmente tocou meu coração. Hoje o ministro das crianças e dos jovens falou comigo sobre essa questão e depois me enviou um memorando. Quero lhes pedir uma ajuda especial: ajudem a Igreja na Irlanda a acabar com isso. E o que quero dizer com acabar com isso? Não quero simplesmente virar a página, mas buscar uma cura, reparação, tudo o que for necessário para sanar as feridas e devolver a vida a tantas pessoas. A carta que escrevi recentemente ao povo de Deus fala da vergonha pelos abusos. Desejo repeti-lo aqui e compartilhar com vocês hoje.

Há algo que entendi com grande clareza: esse drama de abuso, especialmente quando é difundido, produz grande escândalo - pensem no Chile, aqui na Irlanda ou nos Estados Unidos - tem por trás uma Igreja que é elitista e clericalista, uma incapacidade de estar perto do povo de Deus. O elitismo e o clericalismo promovem todas as formas de abuso. E abuso sexual não é o primeiro. O primeiro abuso é de poder e de consciência. Peço-lhes para ajudar com isso. Coragem! Sejam corajosos! Eu realmente não pude acreditar nas histórias que vi bem documentadas. Eu as ouvi agora na outra sala e fiquei profundamente desconcertado. Esta é uma missão especial para vocês: limpem isso, mudem a consciência, não tenham medo de chamar as coisas pelo nome.

Outra coisa. O provincial disse-me que estou alegrando a fé. Mesmo? Contanto que não seja um circo! [Aqui o papa e todos riram alto]. Não, esta é a alegria do Evangelho, a sua frescura movendo-se para a frente, não perdendo a paz. Precisamos trabalhar para que o frescor do Evangelho e sua alegria sejam compreendidos. Jesus veio para trazer alegria, não casuística moral. Para trazer abertura, misericórdia. Jesus amava os pecadores. Mas agora eu estou pregando… eu não finjo! Jesus amava os pecadores… ele os amava! Ele tinha uma forte antipatia pelos corruptos! O Evangelho de Mateus no capítulo 23 é um exemplo do que Jesus diz aos corruptos.

Ter o frescor do Evangelho é amar os pecadores. Vou contar para vocês uma história de um confessor que conheço. Quando os pecadores se confessam, ele os acolhe de tal maneira que se sentem livres, renovados... E quando o penitente tem algo difícil de dizer, ele não insiste, mas diz: "Eu entendo, eu entendo", libertando aquela pessoa de constrangimento. Ele faz dessa confissão um encontro com Jesus Cristo, não uma sala de tortura ou um divã de psiquiatra.

Precisamos ser o reflexo do Jesus misericordioso. E o que Jesus pediu da adúltera? 'Quantas vezes e com quem?' Não! Ele simplesmente disse: 'Vá e não peques mais'. A alegria do Evangelho é a misericórdia de Jesus, na verdade, a ternura de Jesus. E Jesus gostava da multidão, das pessoas simples e comuns. Os pobres estão no coração do Evangelho. Os pobres seguem Jesus para serem curados, para serem alimentados. Foi isso que me veio à mente quando você [voltando-se para o provincial] falou da alegria.

Então você falou de liberdade, liberdade de discernimento. Eu acredito em discernimento e precisamos ser capazes de fazê-lo. Precisa ser feito em oração, buscando a vontade de Deus... e - isto pode soar herético, mas certamente não é - como Jesus está presente na Eucaristia, assim no discernimento o Espírito Santo está presente. É o Espírito que age em mim. E assim você segue e encontra uma estrada na qual você provavelmente não pensou antes... Esse é o espírito da liberdade, o espírito que sempre trabalha em nós. E não devemos perder isso quando falamos de liberdade".

O papa pergunta ao provincial:

"E quantos novicios você tem?".

O provincial responde que há três no mesmo noviciado: um da Irlanda e dois da Grã-Bretanha.

Então Francisco continua:

"Isso é algo que me preocupa: vocações. O que acontece se as pessoas deixarem de se entusiasmar pela nossa vida? Temos que olhar novamente para a nossa vida para abençoar a Igreja com as futuras gerações. Ou já somos estéreis? Quando descobrimos a nossa esterilidade, se nos colocamos em oração com o desejo de ser frutífero, o Senhor nos dará fecundidade. Tenham fé. Cada um de nós deve mostrar ternura para as crianças e falar com os netos. E nós (jesuítas) quase não temos mais 'filhos' e 'netos'! E depois de tantos santos que tivemos na Companhia de Jesus ao longo dos tempos... Temos que pensar e nos perguntar: o que está acontecendo? Com tantos jovens que existem… sugiro que rezem".

Então o papa pergunta se há alguma dúvida... Michael Bingham se levanta para dizer: “Isso não é uma questão. Eu só quero agradecer pelo exemplo de solidariedade que você oferece, especialmente para aqueles que estão na prisão.”

O papa responde: "Por favor, diga um olá de minha parte para aqueles que você conhece. Eu amo aqueles que estão na prisão. Eu tenho um lugar especial para eles no meu coração".

Pe. Brendan McManus pergunta o que pode ser feito concretamente contra os abusos.

O papa responde: "Temos que denunciar os casos que conhecemos. E o abuso sexual é a consequência do abuso de poder e de consciência, como eu disse antes. O abuso de poder existe. Quem entre nós não conhece um bispo autoritário? Porém, sempre na Igreja houve bispos autoritários e até superiores religiosos. E o autoritarismo é o clericalismo. Às vezes o envio em missão decisivamente e com autoridade é confundido com o autoritarismo. Em vez disso, são duas coisas diferentes. Precisamos derrotar o autoritarismo e redescobrir a obediência do envio em missão".

O Pe. John Callanan, por sua vez, pergunta: "Mas como você consegue manter seu coração feliz com tudo o que está acontecendo com você?"

O papa responde: "É uma graça. Todas as manhãs, durante 40 anos, depois da oração da manhã, recito a oração de São Thomas More, pedindo senso de humor. Parece que o Senhor me deu isso! Mas geralmente, devemos ter esse bom senso. O pe. Nicolás costumava dizer que devíamos dar ao pe. Kolvenbach o Prêmio Nobel de Humor, porque ele foi capaz de rir de tudo, sobre si mesmo e até mesmo da sua própria sombra. Esta é uma graça para pedir. Eu não sei se o que eu tenho é o certo, talvez seja apenas tolice... [e aqui todos riem]. Ter senso de humor é um fruto da consolação do Espírito. Insisto em algo que me ajude: um jesuíta deve sempre buscar consolo, ele deve sempre procurar ser consolado. Quando ele está desolado é árido. O consolo é o bálsamo do Espírito. Pode ser forte ou mínimo. O mínimo de consolo é a paz interior. Nós temos que viver com essa paz. Um jesuíta que não vive em paz vive desolado".

O Pe. Michael O'Sullivan se levanta e diz: "Eu não sei se você se lembra, mas nos conhecemos nos anos 80 aqui em Milltown." O papa pergunta seu nome e lembra-se, também lembrou do nome de outro jesuíta que conhecia. O pe. O’Sullivan continua perguntando sobre a responsabilidade por casos de abuso. Francisco começa a responder dizendo que é claro que as pessoas devem assumir suas responsabilidades e fazê-lo seguindo a própria estrutura da Igreja, isto é, das Igrejas locais.

Nesse ponto, uma pessoa entra na sala para pedir ao papa que conclua a reunião, pois estava atrasado. Um irmão jesuíta idoso, George Fallon, em nome de todos, oferece a Francisco uma pequena píxide para levar a comunhão aos enfermos e diz: “Peço ao Senhor que lhe dê o dom do Espírito Santo e a Sabedoria para o ajudar durante sua visita”. Infelizmente, não houve tempo para uma foto de grupo, nem para cumprimentar todos um por um, como geralmente ocorre. O papa pede a todos que rezem juntos um Ave Maria. Todos se levantam. Depois da oração e antes de sair, Francisco não deixa de saudar alguns dos jesuítas idosos em cadeiras de rodas na primeira fila.

La Civiltà Cattolica
*Pe. Antonio Spadaro, SJ é diretor da revista 'La Civiltà Cattolica'.

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