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Lula preso e inelegível reflete o desencanto de milhões de jovens brasileiros.
Maurício está, enfim, protegido de toda traição pela imunidade da morte. (Arquivo Pessoal)
Por Marco Lacerda*
No final dos anos 1970 a sociedade brasileira se articulava pelo fim da ditadura militar. Um dos primeiro sinais do avanço foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores, cujas atividades se concentravam no ABC paulista. O PT entrava em cena a partir da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país, para transformá-la. Aproximava-se a volta dos militares aos quarteis.
Durante minha permanência no Brasil, vindo de San Francisco, onde trabalhava como correspondente do Estadão, participei de uma manifestação do PT em São Bernardo do Campo, onde conheci Maurício, um militante da ala jovem da Libelu (Liberdade e Luta), uma ruidosa facção trotskista ligada ao movimento estudantil. Naquela tarde em São Bernardo os ânimos se acirraram durante um comício de Lula, o líder sindical àquela altura já estabelecido como a voz dos trabalhadores. O confronto com a polícia foi inevitável.
Sentado no capô do carro de reportagem de uma emissora de TV, junto a outros jornalistas que faziam a cobertura do episódio, eu observava Maurício. À primeira vista ele era uma sombra a mais entre as muitas sombras naquela arena de conflito.
Maurício usava uma máscara, não para esconder o rosto, mas para proteger-se do gás lacrimogênio, enquanto recolhia as bombas jogadas pelos policiais nos grevistas e as atirava de volta com a ajuda de um pedaço de feltro enrolado na mão. Tirei um par de luvas de couro que trazia na mochila e o atirei na direção dele. Quando viu cair aos seus pés o artigo de que mais precisava na operação, Maurício ergueu o polegar em agradecimento e continuou seu trabalho até a manifestação terminar, horas depois, com muitos manifestantes presos e outro tanto ferido.
Longe da multidão, nos apresentamos um ao outro, caminhamos e conversamos enquanto consumíamos cigarros até quase queimar os dedos. Era preciso uma segunda olhada para perceber a beleza discreta de Maurício, a graça dos seus gestos e a expressão límpida dos seus olhos, que fazia tudo ao redor parecer sujo. Do que lhe contei a meu respeito nada o impressionou tanto quanto a argolinha de ouro que eu usava na orelha esquerda.
Quando demos por nós, estávamos no pátio da Volkswagen, depois de entrar por um portão lateral ao qual só os funcionários tinham acesso. Por alguns momentos, sequer nos olhamos, espantados pela proximidade um do outro. Sentados no chão de asfalto, entre fileiras de carros encalhados pela greve, nos beijamos na escuridão, nos acariciamos sem pressa entre palavras brandas, despimos um ao outro devagar, com ternura sossegada e uma felicidade parecida com o amor. Não sabíamos como fazer o que estávamos fazendo, fomos inventando, hesitantes, guiando-nos mutuamente com carinho. Não importava o que acontecesse depois, eu levaria comigo aquele dia em São Bernardo gravado para sempre na memória do coração.
O pouco dinheiro que Maurício ganhava na Volkswagen dava apenas para ajudar nas despesas da família na Casa Verde, em São Paulo. Não sobrava nem para a cerveja. A precariedade do seu vestuário revelava a penúria em que vivia. Ao sentar-se, não cruzava as pernas para esconder os buracos nas solas dos sapatos. Mesmo no verão mais inclemente, não tirava a jaqueta para não deixar à mostra as camisas remendadas e as mangas que nunca coincidiam no comprimento.
Acordava cedo em manhãs geladas, sem roupa de inverno, para panfletar em portas de fábricas, convocando companheiros a se levantarem contra os abusos e as violações de direitos em duas décadas de regime militar. “Isso tem de acabar, vai acabar. Agora a gente tem alguém do nosso lado, zelando por nós, os mais fracos, os sem voz”, Maurício me disse uma vez, referindo-se a Lula, a quem mantinha num pedestal reservado apenas aos avatares.
Apesar da dureza em que vivia, Maurício não aceitava convites nem favores que não pudesse retribuir. Quando lhe propus irmos juntos para San Francisco, recusou minha oferta de pagar a passagem. Preferiu vender o pouco que tinha acumulado em cinco anos de trabalho: um aparelho de som, uma bicicleta, uma caneta Parker 51, um relógio de pulso e uma pequena coleção de livros de grandes pensadores. Pouco tempo depois de nos conhecermos, Maurício se demitia do emprego e, com um vocabulário de meia dúzia de palavras em inglês, viajava comigo para San Francisco.
Retornamos à Zen House, a comunidade onde eu vivia, mas era bem outra a cidade que abriga a maior comunidade gay do mundo. A Aids dizimava os homossexuais e o pesadelo era sentido em San Francisco mais que em qualquer outra parte. A doença, ainda sem tratamento, roubou a alegria da cidade. No lugar, deixou paranoia, preconceito e luto numa comunidade ao mesmo tempo obcecada e aterrorizada pelo sexo.
Quando a Zen House passou a acolher vítimas das Aids rejeitadas por família e amigos, Maurício se ofereceu como voluntário na assistência aos enfermos. Era impressionante sua capacidade de entrega quando tinha nos braços um paciente terminal. Afagava os cabelos de garotos da idade dele, cantava cantigas de ninar ouvidas na infância e ia com eles, de mãos dadas, até a última fronteira da vida.
Quando retornamos em definitivo ao Brasil, depois de oito anos vivendo em San Francisco, a Aids ainda era uma crise distante. Logo o círculo foi se fechando. Começaram a morrer conhecidos, depois amigos próximos, até que a doença atingiu Maurício. Mais uma vez acompanhei cada passo da peste atroz, as febres que lhe queimavam as vísceras, diarreias repugnantes que tragavam suas energias, infecções corrosivas. Até que do militante apaixonado do Partido dos Trabalhadores só restou um esqueleto demente sobre a cama, um monte de ossos embrulhados numa camada de pele suficiente apenas para impedir que sua alma fugisse.
Nenhum morto que eu vira antes parecia tão morto quanto Maurício nos últimos dias de vida. Doía ver a decrepitude a que ele chegou antes de completar 30 anos. A última lembrança que tenho dele é do dia, quando ainda tinha o movimento dos braços, em que me deu a argolinha de ouro que levava na orelha esquerda e confessou seu lamento por abandonar o barco no melhor da viagem. Em seguida, balbuciou o que viria a se tornar uma palavra de ordem: “Lu-lá-lá”!!!
Um pedaço de mim morreu com Maurício.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor Especial do DomTotal
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