sábado, 29 de setembro de 2018

Religião e prazer: dilema ou falso dilema?

domtotal.com
Há muito, ainda, o que avançarmos, na consciência de que o prazer não deve ser demonizado.
O prazer e a capacidade de amor são complementares.
O prazer e a capacidade de amor são complementares. (Reprodução/ Pixabay)
Por Felipe Magalhães Francisco*

Nosso maior órgão sexual é a pele. Ela é capaz de sensações indescritíveis de prazer. Infelizmente, tendemos à supervalorização das genitálias, sobretudo a do homem, e acabamos por perder outras dimensões fundamentais para um bem-viver saudável da sexualidade e do erótico. A cultura patriarcal é falocêntrica; tem, aqui, o lugar do poder. Não é à-toa que a masculinidade, tal como a conhecemos em nossas culturas ocidentais, seja tão frágil. É preciso, nesse lugar frágil, um constante reafirmar de virilidade, isso, claro, focado no genital masculino e negando traços do feminino, inclusive de forma violenta, tal como é o caso das terríveis mutilações genitais femininas.

Pensar – e, mais que isso, viver – a sexualidade e o erótico deve ultrapassar a questão genital. É da ordem do sentido e, logo, abarca uma importante dimensão humanizadora. A esse respeito, na semana passada, dedicamos nosso especial a essa reflexão. Agora, dando continuidade a essa importante questão, voltamos nosso olhar para o tema do prazer. Religião e prazer, ao que parece, se olharmos do ponto de vista histórico, têm uma relação conflituosa (isso, claro, direcionando nosso olhar para a cultura ocidental, marcadamente influenciada pelo cristianismo).

Recordo, aqui, um dos versos de Chico Buarque, na canção Apesar de você. Com licença poética, uso desse verso para chamar à reflexão a questão do indispor entre certas veias do cristianismo, com a questão do prazer: “Você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar o perdão”. Em tempos de crescimento da cultura hedonista, talvez o caminho mais fácil para o cristianismo seja o rechaço do prazer como pecaminoso. Isso podemos ver nalguns setores cristãos atuais como, por exemplo, com o slogan Por Hoje Não [vou mais pecar], da Canção Nova, que tem um olhar quase que neurótico para as questões erótico-sexuais. Mas, Chico, os tempos agora são outros: há uma tentativa real de reconciliação entre a religião e o prazer. É claro que há muito, ainda, o que avançarmos, na consciência de que o prazer não deve ser demonizado.

A ética cristã da sexualidade, em geral, lança novo olhar a respeito da sexualidade e do prazer erótico. O reacionarismo não é unânime. Essa visão de abertura, para a sexualidade e o erótico como dom, inclusive são importantes respostas dialogais com o hedonismo no qual estamos imersos, em nossa contemporaneidade. O prazer pode humanizar, bem como pode desumanizar. Aqui está a importância de uma compreensão positiva a respeito do sexo, para além das questões de regulação doutrinal e canônica.

Façamos, vamos amar é o convite de Chico Buarque. Também a Bíblia faz esse convite: não é sem razões que o maior de todos os cânticos que podem ser entoados seja o amor erótico, tal como no livro Cântico dos Cânticos (no hebraico, não há o superlativo, então para trazer essa ideia, “dobra-se” a palavra: o Cântico dos Cânticos é o canto por excelência e clama, desejoso, o amor erótico). Tanto Chico quanto a Bíblia insistem numa coisa: o prazer e a capacidade de amor são complementares. Aqui está a dimensão humanizadora do prazer erótico, a respeito da qual nossos três artigos convidam a refletir, e que revelam que a indisposição entre religião e o prazer corresponde a um falso dilema.

No primeiro, Igreja, prazer e homossexualidade, Javier Celedón Meneghello propõe a importância de uma ética cristã da sexualidade mais aberta. Ele chama a atenção para aquilo a que o cristianismo conseguiu fazer de abertura, para uma compreensão mais positiva do prazer, bem como aponta para alguns limites a serem ultrapassados. O maior deles, destaca, é a compreensão de que a abertura própria da sexualidade e, por isso, do encontro erótico, deve ser mais que a procriação, apenas. É nesse horizonte que nos ajuda a refletir que a sexualidade, então, é bem mais complexa e possível, que aquela defendida pela normatividade heterossexual.

No segundo artigo, Amor é para sempre, sexo também, Simone Ramos traz a reflexão para a complementariedade necessária que há entre amor e a prática da vivência erótico-sexual. Refletindo a respeito da dimensão sacramental do matrimônio, que pressupõe a vivência erótica, a autora convida a um olhar também para todas as relações estáveis, de modo que o prazer erótico esteja envolto numa compreensão de amabilidade, na qual os sujeitos possam amadurecer e se realizar. 

Por fim, Felipe Zangari aborda dois temas que, no atual contexto cultural em que vivemos, talvez soem estranhos e impossíveis: Celibato e a castidade em tempos pós-modernos. No artigo, o autor aborda o sentido cristão para os dois temas, lançando um olhar também para a transformação histórica de sua compreensão. Levantando questões importantes para o nosso contexto, Zangari situa a compreensão do celibato e da castidade na perspectiva do dom e da realidade de um amor que seja capaz de uma plena entrega.

 Sejamos pele! Boa leitura!

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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