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A tortura é má. O fim não justifica os meios. Prática intrinsecamente má não deixa de ser má em nenhuma circunstância.
A tortura é atestado de óbito moral! Contraria todos os princípios cristãos. Nada mais anticristão que tratar torturadores como heróis. (Tânia Rêgo/ Agência Brasil)
Por Élio Gasda*
Em ano eleitoral, uma nação deveria discutir temas que angustiam a população e as propostas de governo de cada candidato. Porém, infelizmente, uma questão que já se acreditava superada, voltou com toda força: a tortura. Assombroso! Mais de 20 anos depois do fim da ditadura, volta-se a propor a tortura como política de governo. A tortura é um crime de lesa humanidade herdado do regime militar: pressão psicológica, choques, espancamentos, violência sexual, estupro e assassinatos fazem parte do cotidiano de delegacias, batalhões da PM e presídios. O propósito? Castigar, degradar e obrigar uma pessoa a dar alguma informação, humilhar.
Empregada como mecanismo de controle ideológico ou disciplinar desde tempos imemoriais pelas autoridades políticas, pelo exército, pelas religiões e partidos como medida judicial, a tortura só foi questionada com o fim da Idade Média e da Inquisição. As primeiras críticas foram de filósofos, como Voltaire, em seu Tratado da Tolerância (1763), e Cesar Beccaria, na obra Sobre os delitos e as penas (1764).
A tortura foi um dos primeiros atos a serem considerados, por sua gravidade, crime contra a ordem internacional. Está proibida de forma absoluta em todas as instâncias. A Declaração dos Direitos do Homem, promulgada em 1948, reza no seu artigo VII: “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Como crime contrário à humanidade está proibida nos Quatro Convênios de Genebra. O instrumento fundamental contra essa prática é a Convenção contra a tortura e outras penas cruéis ou degradantes da ONU, de 1984. Dois artigos chamam a atenção: Cada Estado Parte tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em território sob sua jurisdição. Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para tortura (art. 2); cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal e punirá estes crimes (art. 4). A criminalização da tortura é norma irrevogável.
O Brasil ratificou esta Convenção em 1991. A Constituição Federal de 1988, no art. 5, decreta: ninguém será torturado ou submetido a tratamento desumano ou degradante. O governo não somente está proibido de praticá-la, como também devem coibir e punir os torturadores. O Estado, através da tortura, converte-se em violador dos direitos fundamentais e da integridade física da pessoa. A tortura condena um governo à situação de delinquência.
A ditadura acabou, mas o crime persiste. Hoje, orienta-se por critérios raciais e econômico-sociais. As vítimas preferenciais dos torturadores são, em sua grande maioria, os jovens e os negros da periferia, pacientes de instituições psiquiátricas, asilos, orfanatos, pessoas em situação de rua e a comunidade LGBT. Generalizada e sistemática, a tortura começou no período da escravidão. O Brasil não consegue livrar-se desta vergonha.
Um assassino sádico é elevado a herói. O coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador, foi homenageado dentro do Congresso. Isso é fazer apologia ao crime! O coronel foi condenado em 2012 por torturar, durante 24 horas, e matar o jornalista Luiz Eduardo Merlino, em 1971.
O que dizer sobre crianças torturadas pelo Estado? As histórias relatadas no livro “Rubens Paiva”. Infância roubada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil são chocantes. João Carlos Almeida Grabois estava no ventre da mãe, Crimeia, quando ela levou choques elétricos e foi espancada por quase um dia inteiro. Momentos antes do parto, os torturadores a colocaram numa cela cheia de baratas. Como o líquido amniótico escorria pelas pernas, elas a atacavam. E alguns sequer nasceram. Como o filho de Isabel Fávero que, aos dois meses de gravidez, foi colocada numa sala e torturada com choques, pau de arara, ameaça de estupro. No quinto dia de torturas, abortou.
Tortura nunca mais! “Reitero a firme condenação de qualquer forma de tortura. Torturar as pessoas é um pecado mortal”, disse Papa Francisco na festa de Corpus Christi deste ano. Também Paulo VI foi contundente: “Como poderia a Igreja deixar de tomar uma posição severa em relação à tortura e às violências análogas, infligidas contra a pessoa humana?” (Discurso ao Corpo Diplomático, 14/01/1978). São João Paulo II expressou a sua profunda compaixão pelas vítimas da tortura (Congresso mundial sobre a pastoral dos direitos do homem, 4/07/1998). A tortura é má. O fim não justifica os meios. Prática intrinsecamente má não deixa de ser má em nenhuma circunstância.
A tortura é atestado de óbito moral! Contraria todos os princípios cristãos. Nada mais anticristão que tratar torturadores como heróis. Desejar e alegrar-se com o sofrimento humano é próprio de mentes doentias e personalidades desajustadas. Antes de ser condenado à crucificação, Jesus foi barbaramente torturado (Mc 10,34). Podemos escutá-lo no grito dos torturados de hoje. Você teria coragem de torturar alguém? Não? Mas quer dar ao Estado essa prerrogativa? “Que tempos são estes que temos que defender o óbvio?” (Bertold Brecht).
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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