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Olhar, sentir, agir, é uma tríade divina que nos humaniza e que ajudaria
a humanizar uma humanidade desumanizada.
A experiência dos sentidos sublima a experiência
espiritual. (Reprodução/ Pixabay)
Por Gabriel Araújo Pacheco, sj*
“E Deus viu tudo quanto havia feito, e tudo era muito bom”. (Gn 1, 31)
Uma das características essenciais e mais divinas do Senhor é a capacidade do “olhar”; um olhar para além do que é apenas visível, um olhar as entranhas. Deus vê tudo com olhos que amam e acolhem; Deus vê tudo em profundidade, lá onde encontram-se a beleza e a bondade do que existe.
Tudo quanto havia feito era muito bom: o mundo criado e o ser humano em sua sublimidade. O olhar de Deus, ao mesmo tempo em que o faz ser divino, também o faz mais humano, como nós! Deus olha como os homens e mulheres, e isso o torna tão semelhante e próximo a nós! Quão bom seríamos se fossemos também semelhantes a Ele. Infelizmente perdemos a graça e a capacidade dos olhos abertos para a beleza e sacralidade do mundo que nos abraça, das pessoas que nos encontram; preferimos, em nossa ignorância de simples e frágeis humanos, permanecer no conforto das cegueiras que nos acomodam e que nos tiram da responsabilidade do ver que nos compromete, o ver (no mais profundo, como Deus o faz) as realidades que clamam para serem ao menos vistas e percebidas; decidimos cerrar a visão, ou ver apenas o que nos convém e o que menos nos desinstala.
O olhar atento é janela que se abre para um sentir compassivo e um agir com justiça. Olhar, sentir, agir, é uma tríade divina que nos humaniza e que ajudaria a humanizar uma humanidade desumanizada. Precisamos descerrar os nossos olhos, amolecer nosso coração, desatar nossas mãos.
Inácio de Loyola, em seu livro dos Exercícios Espirituais, propõe o exercício da Contemplação da Encarnação (EE 101-109)
“O primeiro preâmbulo é trazer a história daquilo que tenho que contemplar, que é aqui como as Três Pessoas divinas olhavam toda a planície de todo o mundo, cheia de pessoas, e como vendo que todos se perdiam, determinam em sua eternidade que a Segunda Pessoa se faça homem para salvar o gênero humano (...). O segundo preâmbulo é a composição vendo o lugar: aqui será a grande capacidade e grandeza do mundo, na qual estão tantas e diversas gentes (...)” (EE 102-103)
O Exercício inaciano da Encarnação é o convite à experiência da Trindade que olha, vê o mundo e sente com ele e, para além disso, é movida a decidir, fazer-se um com a realidade, unir-se a ela, na esperança de que a salvação se concretize e que a transformação seja possível e se realize. Quão bonito seria se somássemos nossas forças, aqui e agora, para contribuir com esse sonho de Deus! Inácio quer desmitificar a imagem do Senhor distante e insensível (que é uma chaga que ainda perdura hoje na experiência que tantos fazem de Deus) e nos apresenta o Deus verdadeiro, um Deus “contemplativo, comprometido com a vida, compassivo que se deixa afetar, atingir e comover pela cegueira e morte das pessoas da Terra” (BARRERO, 1995), encarnado na história.
Interessante é perceber como a experiência dos sentidos sublima a experiência espiritual. Para um inaciano o ver, o ouvir, o tocar são essenciais para o experimentar e para o aprender a ser como Jesus e segui-lo em seus passos.
“(...) ver as pessoas, as da Terra, em tanta diversidade, quer de trajes, quer de gestos, uns brancos e outros pretos, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo (...); ouvir o que falam as pessoas (...)”. (EE 106-107)
Aqui vale frisar e atentar-se ao que Inácio propõe como o “dizer das Pessoas divinas”: “façamos Redenção do gênero humano” (EE 107); e ao que Inácio propõe ser a decisão da Trindade: “realizar a santíssima Encarnação” (EE 108). Os olhos e os ouvidos que veem e escutam o profundo, levam ao sentir com intensidade e movem à decisão do agir, com misericórdia e baseado na justiça, diante daquilo que é urgente: a realidade sofrida que grita por salvação.
É necessária uma conversão à humanidade! Como Jesus nos ensina, no mandamento do amor ao próximo: diferentemente do sacerdote e do levita que, no egoísmo e ensimesmados, veem o caído à beira do caminho e o ignoram ou fogem do “problema” (Lc 10, 31-32), precisamos, como o bom samaritano, simples e de sentidos e coração abertos, chegar perto, ver, deixarmo-nos mover pela compaixão, aproximarmos e tratarmos as feridas (Lc 10, 33-34) dos sofredores e das realidade injustiçadas.
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