quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Entrevista com o Cardeal Müller, 'Ninguém tem o direito de indiciar o papa'

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'Os ataques prejudicam a credibilidade da Igreja. Estou convencido de que Francisco está fazendo todo o possível contra os abusos', defende cardeal Müller.
Cardeal Gerhard Ludwig Müller: Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e Presidente da Comissão Teológica Internacional.
Cardeal Gerhard Ludwig Müller: Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e Presidente da Comissão Teológica Internacional. (Reprodução/ Vatican Insider/ Pier Paolo Scavuzzo)
Por Andrea Tornielli

"Ninguém tem o direito de indiciar o Papa ou pedir que ele renuncie!" Os ataques e controvérsias públicas "acabam questionando a credibilidade da Igreja e sua missão". O cardeal Gerhard Ludwig Müller, teólogo e prefeito emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, recebe o Vatican Insider em sua casa na Piazza della Città Leonina, nas salas onde o cardeal Joseph Ratzinger viveu por um quarto de século. O cardeal está preocupado com o clima na Igreja, as tensões, as polarizações e as facções opostas.

No final de agosto, o arcebispo Carlo Maria Viganò publicou um dossiê acusando o papa de supostamente "encobrir" o cardeal Theodore McCarrick e até chegou a pedir a Francisco que renunciasse: o que você acha?

"Ninguém tem o direito de indiciar o Papa ou pedir-lhe para renunciar! É claro que é possível ter opiniões diferentes sobre os problemas existentes e sobre as maneiras de resolvê-los, mas devemos discuti-los de acordo com os papéis de cada um e no fim das contas, são os cardeais, representantes da Igreja de Roma, podem ajudar o Papa ou pedir algumas explicações, mas isso deve ocorrer em particular, nos lugares apropriados e sem jamais causar controvérsia pública com ataques que acabam questionando a credibilidade da Igreja e sua missão. Eu estou pessoalmente convencido de que o Papa Francisco está fazendo todo o possível para combater o fenômeno do abuso infantil e para promover uma nova espiritualidade para os sacerdotes, que devem agir de acordo com o coração de Cristo e fazer o bem para todas as pessoas, especialmente para as crianças e os jovens".

Hoje, até mesmo o terrível escândalo do abuso é usado para batalhas internas na Igreja. Você concorda?

"Todos nós devemos trabalhar juntos para superar esta crise que está prejudicando a credibilidade da Igreja. Infelizmente temos esses grupos, esses ‘partidos’ - os chamados ‘progressistas’ e ‘conservadores’. Estamos todos unidos na fé revelada e não pelos preconceitos das ideologias políticas: não somos uma entidade política, a Igreja foi instituída por Jesus Cristo e é dirigida pelos bispos e especialmente pelo Sucessor de Pedro, que é o princípio permanente e fundamental da unidade da Igreja na verdade revelada e na comunhão sacramental, em sermos irmãos e em confiar uns nos outros, como lemos no Concílio, na Lumen Gentium no número 18. Espero que o Papa possa tomar alguma iniciativa de reconciliação, por exemplo, para administrar a crise que seguiu o escândalo dos abusos nos Estados Unidos, Francisco poderia nomear uma comissão de cardeais em quem ele confiasse, para estudar a situação e depois, com base em informações sólidas, fazer algumas propostas, além das oposições, lutas entre facções, suspeitas mútuas e propaganda realizada por campanhas da mídia. Precisamos de uma base sólida de informações: só assim as decisões podem ser tomadas para o futuro".

Não há dúvida de que o abuso infantil é um crime e um pecado abominável. Mas você não acredita que existem - dentro da Igreja - aqueles que confiam demais nas melhores práticas e normas como uma solução para o problema? Não há risco de esquecer que a Igreja não é uma empresa?

"O direito canônico é para nós um instrumento, uma ajuda necessária à Igreja, que como toda sociedade precisa de suas regras. No Direito Canônico temos normas da lei divina que não podemos mudar, mas também normas da lei eclesiástica humana que podemos mudar e atualizar para responder melhor às necessidades e circunstâncias a serem enfrentadas, mas nós, a Igreja, somos uma realidade sacramental e espiritual e, mais importante, somos guiados pelas dimensões da moralidade e a fé: as regras, as normas e a disciplina externa não são suficientes. Precisamos de uma renovação espiritual, de oração e de penitência, inspirando-nos na graça dos sacramentos, lendo e meditando na Bíblia, entrando no espírito de Jesus Cristo, devemos ser sacerdotes de acordo com o coração de Jesus, o coração de Jesus Cristo na cruz que sofreu e morreu pelo amor de todos os pecadores e de todos os seres humanos. O sacerdote é um alter Christus, não por causa de sua habilidade ou qualidades, mas porque dá seu coração pela humanidade. Temos que dar testemunho disso e ao fazê-lo restaurar a credibilidade da Igreja para que as pessoas possam encontrar a fé".

Diante dos escândalos do abuso, Bento XVI e Francisco insistiram no caminho da conversão e da oração...

 "É a maneira mais autêntica. Existem procedimentos que foram estabelecidos para combater o fenômeno, mas a renovação espiritual e a conversão são mais importantes. Há sacerdotes que nunca vão a exercícios espirituais, nunca se aproximam do confessionário, nunca rezam o breviário. E quando a vida espiritual fica esvaziada, como pode um sacerdote agir de acordo com Cristo? Ele corre o risco de se tornar um "mercenário", como lemos no Evangelho de João". 

A Santa Sé pediu aos bispos americanos para adiar a votação sobre as novas normas anti-pedofilia - que previam o estabelecimento de comissões de leigos para investigar a responsabilidade dos bispos - isso causou grande agitação. Como você julga o que aconteceu?

"De acordo com a instituição sacramental da Igreja, os bispos têm sua responsabilidade e o Papa tem a dele, mas todos devem colaborar. Temos normas suficientes no Direito Canônico, existe o motu proprio sacramentorum sanctitatis tutela de 2001, existem as já estabelecidas normas da Congregação para a Doutrina da Fé, mas nem sempre todos os bispos colaboraram com o nosso departamento. Eles não informaram os fatos como devia ser feito, primeiro devemos fazer o que já está estabelecido e indicado como necessário e obrigatório nas normas existentes. E aí começa a colaboração, num espírito de fraternidade e colegialidade, e talvez discutir se o tom do texto proposto é ou não adequado. Alguns bispos me disseram que o texto chegou a Roma dos Estados Unidos no último momento: por que não foi enviado antes? Devemos evitar o confronto e a controvérsia pública, e primeiro discutir juntos para depois chegar a uma decisão. Precisamos conversar mais antes. Achei que era necessário para a Presidência da Conferência Episcopal Americana para primeiro consultar nossos especialistas na Congregação para a Doutrina da Fé. O Santo Padre é uma pessoa só, ele não pode lidar com tudo. É por isso que existem os departamentos da Cúria Romana, para colaborar e chegar a uma proposta bem desenvolvida para levar ao Papa".

Hoje há aqueles que insistem em dizer que o problema do abuso está na realidade ligado ao problema da homossexualidade do clero. Qual é a sua opinião sobre esta questão?

"Pedofilia e homossexualidade são expressões de psicologia que ajudam a Igreja em sua teologia moral. Mas para nós, a dimensão continua sendo a moral: ou seja, a questão é se agimos de acordo com os Mandamentos, de acordo com a santa vontade de Deus, ou não. Temos de colaborar com a psicologia e a sociologia, mas nós, na Igreja, no nível do Magistério, não devemos colocar essas disciplinas em primeiro plano, mas devemos nos basear na teologia moral. Não será possível aos fiéis leigos fazer sexo fora do casamento e a um padre - que se comprometeu com o celibato - não é possível fazer sexo, nem é possível abusar sexualmente de crianças ou jovens. O abuso de crianças é um pecado abominável que rouba as almas das crianças que nos são confiadas, é algo diabólico! Temos que elevar o nível moral do clero, quanto à sua pergunta: não podemos falar de "homossexuais". Não existe isso de "homossexuais "como uma categoria. Há pessoas concretas que têm certas tendências e há tentações. Nossos corações estão feridos pelo pecado original e devemos vencer as tentações com a graça, a nova vida em Jesus Cristo. Sempre chamando o pecado de pecado e reconhecendo-o como tal, para não cair na corrupção daqueles que pecam e se justificam a si mesmos".

O Papa Francisco fala de abuso de poder e clericalismo para indicar que antes de ser abuso sexual, ou seja, abuso de crianças por parte de clérigos (e adultos vulneráveis), é um abuso por aqueles que exercem algum tipo de autoridade sobre a vítima. Por essa razão, pode-se dizer - por exemplo - que McCarrick não tinha simplesmente relações homossexuais com seus seminaristas, mas abusava deles.

"Acredito que o Papa gostaria de sublinhar o fato de que nos abusos sexuais contra crianças cometidos por padres há sempre um abuso da autoridade natural e espiritual do sacerdote. O clero é um representante de Jesus Bom Pastor, as crianças e os jovens confiam em Jesus e ele exerce a paternidade sobre eles. O abuso sexual começa com um abuso de autoridade e de consciência. Isso, eu acredito, é o que o Santo Padre quis dizer. Se alguém tem um coração secularizado, pelo poder, o benefício próprio, o luxo, o dinheiro, o prazer, essas coisas se tornam ídolos. O sacerdote não deve se tornar mundano: nosso tempo, nosso ser, é para o povo, para o povo de Deus.

O Papa Francisco insiste em advertir contra o clericalismo...

"Eu não gosto dessa palavra porque é ambivalente, mas como eu disse, fazemos referência ao abuso dos poderes pelo padre. Quem deixa de ser um bom pastor de acordo com o coração de Jesus e se torna um mercenário. Estas são as palavras da Bíblia".

Eminência, como você julga a polarização e a ênfase com que certos grupos e certas mídias exploram algumas nomeações erradas, talvez com omissões significativas dependendo do grupo ao qual pertencem?

"Temos exemplos muito claros na Bíblia: o próprio Jesus chamou os doze apóstolos e um deles foi um traidor, Judas. Mesmo hoje é possível que o Papa possa nomear uma pessoa de ‘falsa’", como uma pessoa que não é adequada para o papel ou para o episcopado. O próprio Jesus Cristo, mesmo sabendo tudo graças ao seu intelecto divino, deixou a liberdade ao traidor Judas, então todos são responsáveis pelo seu pecado: nós podemos, através do processo de seleção com as Congregações, através de todos nossos julgamentos humanos fazer todo o possível para eleger um bom candidato ao sacerdócio. Mas o Papa não é responsável pelo que esses bispos fazem, assim como os bispos não são responsáveis por tudo o que seus sacerdotes fazem. Todos são pessoalmente responsáveis pelo mal que cometem".

Como, então, o processo de seleção de bispos pode ser melhorado?

"Para nós, homens, não é possível formular um juízo absoluto e perfeito: fazemos isso de acordo com nossas possibilidades limitadas, segundo o que nos é dado conhecer. É preciso procurar candidatos adequados para o episcopado, mas o papa não é infalível. E, mesmo no futuro, não seremos capazes de evitar completamente os erros, devemos aprender com os erros, tentar fazer com que cada vez sejam menos. Devemos tentar fazer a seleção funcionar melhor e melhor, mas somos homens e como tal, somos pecadores e falíveis, todos precisamos da misericórdia e do perdão de Deus, todos devemos nos reconhecer como pecadores, não necessitamos daqueles que se colocam como juízes ou vingadores e considerem-se justos. Estou convencido de que um passo significativo seria promover uma maior colaboração entre os vários departamentos da Cúria Romana para o bem da Igreja. Todos os departamentos individuais já se referem ao Papa, mas a colaboração horizontal deve ser reforçada".


Vatican Insider - Tradução: Ramón Lara

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