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Quantos encontros terão sido regados à perversa violência? Quantas vezes por dia? Quantas mulheres, meninas, mães?
Isso não é de Deus. Não ao Deus de Jesus Cristo, a Ele não agrada o sofrimento das mulheres. (Pedro Ladeira / AFP)
Por Tânia da Silva Mayer*
São estarrecedores os acontecimentos todos que nos cercam. E as coisas estão tão caóticas que se torna cada dia mais difícil discernir as causas motivadoras ou as soluções que poderiam ser tomadas diante do nefasto da vida. São tempos difíceis que exigem retomada de sentido a todo instante. Tenho acompanhado em choque as notícias relativas aos casos de abuso de mulheres atribuídos ao médium João de “Deus”. A sensação que tenho é que a cada dia mais e mais mulheres comparecem às delegacias para registrarem o abuso que teriam sofrido por parte do religioso. É tão assustador que o número já passe de centenas. Compreendendo a abrangência do trabalho realizado pelo acusado, no que se refere ao número de pessoas que por ele foram atendidas ao longo dos anos, tornar-se inimagináveis os cálculos relativos aos abusos que podem ter sido cometidos. Um nojo.
Quantos encontros terão sido regados à perversa violência? Quantas vezes por dia? Quantas mulheres, meninas, mães? Caso as acusações sejam comprovadas, que palavra de reparação poderá ser proferida? Há reparação? Diante desses acontecimentos, precisamos pontuar ao menos duas coisas para um início de conversa. A primeira é o fato de que nossa cultura é violenta, sobretudo com as mulheres. O cume dessa violência é se perguntar por que uma vítima demorou tanto tempo para falar do abuso sofrido e sua reincidência no local do crime. Essa questão é a última formulação de um sistema que desacredita mulheres vítimas de violência, sejam elas físicas, simbólicas ou psicológicas. Esse costume de duvidar das vítimas é uma maldade sem limites. É duvidar da dor e imputar um duplo sofrimento ao tornar a vítima ré de uma situação que não deveria ter sido publicada em prejuízo do homem, potencial abusador.
Uma segunda coisa que considero importante e que fundamenta o que dissemos acima é o sistema religioso que herdamos e continuamos construindo.
Às avessas com o feminino, os sistemas religiosos se organizaram ao redor dos homens e de seu mundo, a partir dos quais serviram-se das categorias de força, domínio, violência e poder. Nossas religiões se ergueram sobre esses pilares ao mesmo tempo em que os reforçaram com seus ritos e símbolos. Não sem razões, os serviços religiosos são delegados majoritariamente aos homens. No caso do catolicismo, o serviço religioso é desempenhado por homens, mas vendidos a uma maioria de mulheres. Através de narrativas de culpa e submissão, as mulheres das religiões acabam se tornando vítimas nos espaços nos quais o respeito pela dignidade humana deveria ser norma. O que assistimos com alguma cumplicidade é a violência contra as mulheres, institucionalizada no âmbito religioso e com as mesmas características que as vistas em outros espaços. Quem não se recorda de casos de abusos envolvendo líderes religiosos? No início deste ano, um pastor da Igreja Evangelho Quadrangular foi preso acusado de estuprar algumas fiéis da igreja. No catolicismo, o cenário não é mais animador, há mulheres que conheço e que já foram perseguidas, importunadas e assediadas por padres, alguns dos quais tenho o desprazer de conhecer. João, que se diz de “Deus”, é mais um exemplar daqueles que se apropriam da busca de fé das pessoas para cometer contra elas atrocidades sem limites.
Isso não é de Deus. Não ao Deus de Jesus Cristo, a Ele não agrada o sofrimento das mulheres. O que é feito pelos homens das religiões e por outros em outros setores da vida não tem nada a ver com o projeto de Reino de mais vida para todas as pessoas. Uma fé cristã madura e consciente não tolera nenhum tipo de violência e nem o abuso de poder, justamente por se dar em vista da precarização da vida das minorias. Que os culpados sejam de fato identificados e punidos de seus crimes.
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