sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Quem critica o papa entende de papado?

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Algumas reflexões sobre as análises infundadas sobre o papado contemporâneo.
Papa Francisco durante missa na Basílica de São João de Latrão, em Roma.
Papa Francisco durante missa na Basílica de São João de Latrão, em Roma. (Vatican Media)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

Analisar um pontificado talvez seja uma das coisas mais complexas de se fazer dentro do ambiente eclesiástico. Na Igreja Católica, foram 266 o número daqueles que se sentaram na cátedra que, segundo a tradição, teria sido ocupada pela primeira vez pelo apóstolo Pedro. Em todas as épocas, os sumos pontífices foram vítimas e agentes de intrigas, complôs e disputas, seguindo as nuances de um mundo que, em cada época, se relacionou de maneira particular com o tempo, com a fé e com os valores.

As análises marginais que se fazem dos papas dá espaço para uma “ideologização pontifícia” sem fim: fizeram isso com João Paulo II, Bento XVI e o fazem com Francisco. As “massas” acabam adotando o papa que mais se adequa aos anseios e às orientações políticas dos pequenos grupos que as manobram. De repente, aqueles que outrora se diziam fiéis ao papa, independente de quem fosse, são os mesmos que, atualmente, fazem um jogo sujo para desqualificar o pontificado de Francisco, desconsiderando a sua importância em meio à essa tentativa de reaproximação entre igreja e sociedade. Para não citar que, durante o caso Viganò, puseram sobre o papa toda a responsabilidade de uma situação que, na verdade, deveria recair por primeiro sobre a conferência episcopal americana, o atual berço ultramontanista do catolicismo, onde, como podemos observar a partir dos últimos acontecimentos, o corporativismo eclesiástico impera de maneira ostensiva e descarada.

Por trás dessa tendência de contrapor papas, está, na verdade, aquela velha desonestidade intelectual ou uma falsa intelectualidade pautada pela lista de constituições, encíclicas e documentos decorados que foram completamente extraídas do contexto histórico. Não venha me dizer, por exemplo, que Pio XII, durante todo o seu governo, se limitou a atacar o comunismo stalinista ou que o Sillabo contra o modernismo de Pio IX pode integralmente se adaptar ao que se vive no presente.

O pontificado de Pio IX, o papa que presenciou a queda do estado pontifício e, por conseguinte, o fim do poder temporal do papado, pode nos oferecer algumas chaves de leitura para entendermos esses fenômenos do presente. O exílio de quase um ano e meio desse papa o transformou em um herói e resgatou algo que o renascimento dos “papas-príncipes” tinham roubado: a devoção e o respeito ao sumo pontífice. Através de uma distribuição de “santinhos do papa prisioneiro”, entre os anos 1849 e 1850, se estruturou em Roma um movimento que lutava em favor do papa e promovia sua figura, algo que desde o século VIII não se observava. A partir de então, sobre todos os papas que o sucederam recaiu novamente aquela aura de santidade, que na visão escatológica do homem da baixa idade média, deveria pairar sobre o homem escolhido por Deus para governar sua igreja. Porém, para os neo-ultramontanistas das Américas é como se Francisco quebrasse esse ciclo.

Por outro lado, assim como alguns atribuem a determinados ritos o título “missa de sempre” sem qualquer conhecimento de causa, fazem o mesmo com a figura do papa, transformando-o em um semideus salvaguardado pelo dogma da infalibilidade e em uma figura transcendente desprovida de um programa de governo pensado e bem estruturado. É por isso que Francisco, ao se apresentar como bispo de Roma em sua primeira aparição pública após o conclave, em 2013,  assustou os mais “pios”. Se concentraram muito na “mozzetta” vermelha que ele não utilizou em vez de colherem a profundidade do gesto: o papa quis demonstrar que, desde o primeiro dia de pontificado, trabalharia em prol da colegialidade.

 Para se entender um papado é necessário levar em consideração todo e qualquer movimento do pontífice: das viagens apostólicas que ele escolhe realizar às visitas privadas que ele recebe semanalmente na casa Santa Marta. Do contrário, o papa vira meme, slogan e um personagem instrumentalizado para atender aos interesses de grupos que não querem o bem da igreja nem de longe.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

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