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O Reino do Deus amoroso manifesta-se como ação libertadora de todos para a vida digna já aqui e vocacionada à plenitude futura na comunhão eterna com Deus.
A consciência do Reino 'de Deus' dá força para fazer dele uma realidade concreta no presente e esperança de um futuro melhor. (Tom Parsons by Unsplash)
Por Carlos Cunha*
A declaração de Jesus: “O Reino de Deus está próximo” trouxe inquietação aos seus contemporâneos. Os israelitas ficaram confusos, pois o domínio político ainda era romano. As autoridades da época sentiram-se ameaçadas com os rumores de possível rebelião. No entanto, o reinado do Pai proferido por Jesus enfatiza que Deus se faz presente e atuante. Seu Reino pode ser percebido no mais profundo da vida em forma de presença salvadora. A expectativa como realidade futura cede lugar ao dinamismo salvador de Deus presente e em curso. “O Reino de Deus não vem de forma espetacular nem se pode dizer: ‘Ei-lo aqui ou ali’. No entanto, o Reino de Deus já está entre vós” (Lc 17,21). Jesus traz para a história as expectativas dos visionários que entendiam o governo divino como algo espetacular ou cósmico. Não se trata de algo a ser perscrutado nos céus e nem de algo situado em um só lugar e num determinado momento da história. É preciso captar os “sinais” da sua presença na realidade do dia a dia (Mt 16,3) de forma dinâmica, graciosa e difusa.
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Com frequência, a expressão “o Reino de Deus já está entre vós” é traduzida por “o Reino de Deus está dentro de vós”. Tal tradução deturpa, muitas vezes, o sentido proposto por Jesus ao reduzir o Reino de Deus a algo tão somente privado e subjetivo. Ora, para o Mestre de Nazaré, o Reino possui intrinsecamente dimensões públicas, políticas e sociais também. De outro modo, ao focá-lo como algo meramente individual, canaliza-se ou restringe-se as suas forças libertadoras a processos terapêuticos, de cura interior, sem qualquer implicação na transformação social. Esta não é a única proposta libertadora do governo de Deus.
Diferente das perspectivas apocalípticas da época de Jesus, o Reino de Deus não é algo paralelo que abruptamente irrompe diante deste mundo perverso. A soberania de Deus já está no mundo, conduzindo a vida à sua libertação definitiva. O seu reinado, proclamado e vivido por Jesus, por um lado, luta contra todas as formas de desumanização do ser humano e, por outro, promove as que se mostram a favor da dignidade da vida. O Reino, para Jesus, é um acontecimento cósmico com dinamismo histórico, concretizado como realidade para os justos, contrária aos pecadores. Ele não consiste na vitória triunfal dos santos e na condenação dos pecadores. Antes, o Reino do Deus amoroso manifesta-se como ação libertadora de todos para a vida digna já aqui e vocacionada à plenitude futura na comunhão eterna com Deus.
A atuação de Jesus visa promover e acolher o governo divino: provocar a consciência da liberdade de filhos e filhas, construir a sociedade justa, curar doenças e enfermidades, libertar do mal, dar ânimo e purificar a religião. O Reino não é algo etéreo. O convite de acolher e “entrar” na dinâmica do Reino implica conversão profunda e deixar-se ser transformado e transformar a vida tal como Deus a quer. Aqueles que se associam ao projeto da implantação do governo divino não podem permanecer à mercê de um sistema que aliena e oprime o ser humano. “Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). Jesus introduziu novo modelo de comportamento social segundo o qual não é possível entrar no Reino de Deus sem sair do reino das riquezas (Mamon).
A mudança de vida em prol do bem de toda criação é característica do cidadão do Reino de Deus. Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes do Reino. O cristão, como discípulo de Cristo, não tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa esperança. A fé desmascara, à luz da Palavra de Deus, o discurso ideológico dos dominadores e revela a opção de Jesus pelos marginalizados. Jesus assume sua identificação com os oprimidos, e neles quer ser amado e servido (cf. Mt 25,35-36). O Reino de Deus já manifesta a sua força libertadora. Não em sua totalidade e plenitude final, mas de maneira parcial e fragmentada. Ele é ação continuada do Eterno, não intervenção pontual. É ação que pede acolhida responsável e que não se deterá, apesar de todas as resistências, enquanto não alcançar a sua plena realização. Já está “germinando” o mundo novo, mas só no futuro alcançará a sua plenitude.
Na tradição cristã, Deus é um ser absoluto, pleno. Toda a criação tem uma marca da sua plenitude. A dinâmica da vida remete à criatividade deste Mistério. O que esperar de um Reino regido por este Ser? Que ele também emane vida, plenitude, dinamismo e criatividade. Atrelar ao Reino o nome de Deus é propiciar a ele um sentido que toca o presente e o futuro de profunda manifestação da graça do amor divino pelos humanos e por toda a criação. Outro mundo é possível porque antes de ser um lugar temporariamente afetado pelo anti-Reino é um ambiente carregado da identidade divina que depois do ato criacional descansou de toda a obra que, como Criador, fizera, diz o relato poético de tradição sacerdotal do Gênesis.
A consciência do Reino “de Deus” dá força para fazer dele uma realidade concreta no presente e esperança de um futuro melhor. Sem fé na irrupção do Reino “já e ainda não” na existência não teria sentido propô-lo como símbolo de resistência em prol de um mundo mais justo e fraterno. O Reino de Deus é uma valiosa contribuição da teologia cristã para a humanidade. No nosso tempo, marcado pela violência generalizada e desumanizadora, o projeto de vida proposto pelo reinado divino contribui para o resgate da nossa plena hominização.
A crise civilizatória é também uma crise nessa esfera de valores religiosos. Resgatar a teologia do reino como serviço da esperança é tão necessário quanto restaurar as outras dimensões da existência. A cidade contemporânea é moradia de um indivíduo desafiado a recuperar a sua humanidade plena capaz de reconhecer o outro como “próximo” – segundo propõe a tradição cristã. É neste sentido que propomos pensar e fazer o Reino de Deus. Como expressão aberta, polissêmica e contextual, o Reino vem se ressignificado no decorrer da história do cristianismo em conexão com as demandas do mundo.
A nossa inspiração vem do modo como Jesus Cristo apresentou o Reino do Pai. Nos Evangelhos, o anúncio do Reino feito por Jesus é marcado por sinais da sua concretude. Foram os feitos do Filho do Homem que legitimaram o discurso sobre o governo de Deus entre os seres humanos. Diferente de uma fala vazia e hipócrita, as palavras do Salvador estavam enraizadas no comprometimento com os marginalizados. São palavras de salvação para as vítimas de um sistema social-político-econômico colonizador e excludente.
O Reino de Deus se coloca como um conceito, não abstrato, mas concreto; com uma identidade na tradição judaico-cristã, mas não limitada a ela. É uma concepção de vida organizada a partir de Deus, ou o nome que se queira dar ao Transcendente, sensível ao sofrimento dos crucificados e, com eles, questionador de um sistema-mundo perverso. A teologia que emerge daí faz da esperança na plenitude do Reino de Deus do amanhã inaugurada pelo Ressuscitado revigorar a utopia da luta por justiça do presente na certeza de que o Crucificado não padeceu em vão.
*Carlos Cunha é professor colaborador do PPG em Teologia da FAJE e pesquisador do grupo de estudo Fé e Contemporaneidade do CNPq.
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