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Como os religiosos passarão a justificar o acesso desmedido a armas de fogo diante do apelo da Igreja para não mais fabricá-las?
Um soldado ucraniano perto da cidade oriental de Pervomaysk. (Gleb Garanich/ Reuters)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Na semana passada, fiz um artigo sobre Bento XV, apresentando-o como “o papa esquecido” por causa da sua luta pela paz durante a primeira guerra mundial. E nada foi mais pertinente, uma vez que coincidiu com a semana em que o presidente da república, Jair Bolsonaro, levou adiante uma de suas propostas de campanha, flexibilizando o acesso a armas de fogo por parte de civis. Obviamente, não adentraremos no tema da legítima defesa segundo a visão do catolicismo, algo bastante complexo que exigiria um debate mais amplo e o auxílio de especialistas na matéria. Em vez disso, proponho esta série de artigos para gerar uma reflexão sobre os riscos de se criar um ciclo vicioso de “militarização da mentalidade”, como aconteceu em meio às duas grandes guerras do século XX, nas quais muitos católicos, em vão, tentaram encontrar “justificativas cristãs” para essas tragédias mundiais (Farão o mesmo caso haja guerras civis e mortes em nome de uma suposta legítima defesa?).
O posicionamento de Bento XV sobre a primeira guerra mundial gerou resistências porque pairava um certo entusiasmo em relação ao conflito, tendo em vista o crescente patriotismo coletivo sustentado, inclusive, por muitos católicos. Apesar de o papa ter optado pela via diplomática da neutralidade, ao considerar a guerra como inútil e corajosamente tê-la interpretado como fruto da “falência moral da Europa” em sua famosa encíclica pela paz, de 1914, fez cair por terra toda e qualquer justificativa para a guerra. Alguns representantes católicos chegavam a considerar a guerra “uma oportunidade para unir e renovar o povo na fé católica” e o documento papal, naquele momento, não se enquadrava nesse tipo de propaganda bélica difundida em quase todos os países católicos.
Alguns bispos, para aliviar a consciência de alguns soldados católicos, sobretudo durante a primeira guerra mundial, chegavam a dizer que “bastava matar sem ódio” - como se fosse possível! - caso fosse necessário fazê-lo. Sendo assim, fuzilar alguém em nome da nação ou dos interesses da mesma, independente das circunstâncias, passaria a ser algo lícito com “as bençãos” de um representante da Igreja. A que ponto chegamos? Só na Itália, 24 mil clérigos financiados pela nação, serviam no fronte de batalha, os quais, além de tudo, ocupavam os cargos de alto escalão por causa do nível de escolaridade que possuíam. Dá a impressão que alguns padres que se matriculam em cursos de tiro, no Brasil, sentem alguma nostalgia dessa época.
Não foi à toa que Papa Francisco, na audiência privada concedida à Associação dos professores de história da Igreja - evento do qual participei na semana passada - encorajou-nos a olhar para o passado com atenção, de modo que contribuamos com a não repetição desses eventos trágicos que marcaram a história da humanidade.
“A história, estudada com paixão, pode e deve ensinar muito ao hoje, tão marcado pela falta de verdade, de paz e de justiça. Bastaria, através da história, que aprendêssemos a refletir, com paciência e coragem, sobre os efeitos dramáticos da guerra, das tantas guerras que perpassam o caminho do homem nesta terra. E parece que não aprendemos!”, enfatizou.
A encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, como já expliquei em outros textos publicados pelo nosso site, foi um divisor de águas em relação à linguagem utilizada pelos documentos do magistério até então. O papa bom, como era conhecido, fez um apelo ao desarmamento integral em meio ao surgimento da bomba atômica e, de maneira corajosa, disse não se aplicar mais o conceito de guerra justa diante da desproporcionalidade dos instrumentos de guerra que acabavam de ser inventados. E esse papa não utiliza uma palavra qualquer para condenar veementemente a indústria de armamentos: define a corrida pelas armas como uma psicose - inclusive esse é título que introduz a parte que trata do tema no documento.
“Todos devem estar convencidos de que nem a renúncia à competição militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa eliminação, que seria o principal, de modo nenhum pode causar efeito, se não se proceder a um desarmamento integral, que atinja o próprio espírito, isto é, se não trabalharem todos em concórdia e sinceridade, para afastar o medo e a psicose de uma possível guerra”, disse João XXIII.
Como disse no início, o problema maior está nessa “militarização da mentalidade”, a qual, quando se alastra - como já nos demonstrou a história a partir da “cristianização do império romano em 313 d.C até as cruzadas medievais - tende a justificar qualquer atrocidade desde que ela seja perpetrada “em nome de Deus e dos valores”. Será que não estamos, com isso, abrindo as portas para a instauração da “terceira guerra mundial em pedaços”, como diz o Papa Francisco?
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
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