sábado, 26 de janeiro de 2019

O que as viagens do Papa têm a nos dizer?

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Não basta ler encíclicas, discursos e acompanhar eventos. Quem quiser conhecer o governo de um papa a fundo, deve ficar atento às viagens que ele realiza.
Papa Francisco no Myanmar, em 2017. Ele foi o primeiro papa a visitar o país.
Papa Francisco no Myanmar, em 2017. Ele foi o primeiro papa a visitar o país. (ANSA)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

Tudo começou com Paulo VI: o primeiro papa da história a cruzar oceanos para ir ao encontro da Igreja espalhada pelos quatro cantos da terra. E ele não foi somente o pioneiro de travessias a bordo de um avião. Uma delas o levou não somente atravessar os limites do espaço aéreo italiano - uma vez que, há 100 anos, até aquela data, um papa não saía da Itália -  mas derrubar as barreiras diplomáticas de um cisma de mais de mil anos entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa. Na Terra Santa, em 1964, um aperto de mão entre o líder máximo da Igreja Católica e o líder da Igreja Ortodoxa de então, Patriarca Atenágoras, impulsionou o estabelecimento do diálogo ecumênico tão almejado por vários movimentos em prol da unidade que surgiam na Europa do pós-guerra. Por causa de Paulo VI, os sumos pontífices que o sucederam, à revelia de suas vontades, precisam viajar, carregando na mala o cajado de pastor e a destreza diplomática ora para lidar com conflitos, ora para consolar aqueles que ainda veem no papa um enviado por Deus.

Uma viagem apostólica internacional pode mudar de vez os rumos de um pontificado. Foi justamente na viagem a México e Cuba, em 2012, que Bento XVI se deparou com seu cansaço, o que, de acordo com fontes ligadas ao pontífice alemão, o teria motivado a renunciar um ano depois. Porém, uma viagem apostólica internacional também pode ser trágica. Em 2006, durante uma lectio magistralis na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, Ratzinger atraiu a ira dos muçulmanos ao proferir uma frase do imperador bizantino Manuel, o Paleólogo, sobre a guerra santa. Apesar de não ter sido a sua intenção inflamar alguns grupos do mundo islâmico, o caso foi tratado como um deslize diplomático que custou a ser reparado. E isso serve para dizer que todo cuidado é pouco em uma viagem apostólica internacional onde o papa, mais que em qualquer outra ocasião, endossa as vestes de chefe de estado.

Seu antecessor, João Paulo II, conseguiu bater todos os recordes, se tornando o papa que, em número de viagens dentro e fora da Itália, superou todos os papas do século passado (somados), realizando 104 viagens internacionais e 146 nacionais. 

A diferença de Papa Francisco em relação aos papas anteriores são os lugares que elege para visitar. O papa argentino chega onde nenhum outro avião papal chegou. E em meio a tantas novidades, ele promove outras. A entrevista durante o voo papal - que até Bento XVI se estruturava a partir das perguntas previamente enviadas ao pontífice dias antes da viagem -, se transformou em uma coletiva de imprensa na qual qualquer jornalista é livre para perguntar o que bem deseja. Francisco sabe que se aproximar dos jornalistas, promovendo esse clima “familiar”, só tende a contribuir com a restauração da imagem da Igreja após o escândalo Vatileaks, de 2012 -  período no qual a Santa Sé queria ver qualquer pessoa, menos um jornalista a indagá-la.

 Esta semana Francisco divulgou que visitará o Japão e o Iraque este ano, demonstrando, com isso, que é realmente o papa das periferias: as físicas e as existenciais. É bem provável que, depois de sua morte - ouso dizer -, “O papa das periferias” seja o modo com o qual ele ficará conhecido para a posteridade. Até lá, observemos cada passo seu e descubramos, nesse vai e vem de visitas a países jamais visitados por um papa, como o mundo responderá a isso. Que venham mais encontros com Atenágoras, Antonios e Josés da vida, e que sejam quebrados todos os muros da indiferença que, no mapa de viagens de Francisco, devem ser abatidos de uma vez por todas.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

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