domtotal.com
Cristianismos sem Jesus estão cada vez mais comuns: apropriam-se de variados espaços de poder, contribuindo para a alienação das pessoas e a manipulação da consciência.
O cristianismo que cede ao poder é um cristianismo que se perdeu de Jesus. (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Felipe Magalhães Francisco*
Jesus não conheceu o cristianismo como religião. Ele era judeu. Segundo podemos intuir, a partir das narrativas evangélicas, ele era profundo conhecedor das Escrituras e das tradições religiosas de seu povo. Tão conhecedor a ponto de vivê-las de modo livre e, muitas vezes, ressignificando-as. Mas esse Jesus inaugurou um movimento, que está além da questão religiosa, propriamente dita: atuava para expandir e alargar as consciências de seus contemporâneos, a respeito de uma profunda e libertadora compreensão de Deus, experimentado e compreendido como seu Pai. A vida de Jesus, que nunca foi religiosamente cristã, foi vivida de modo plenamente cristão: é por isso que seus seguidores e seguidoras podem se chamar, a si mesmos, de outros cristos.
Os depois de Jesus, seus discípulos e discípulas, organizaram-se a partir daquilo que aprenderam com seu Mestre e Senhor. Comprometeram-se com sua causa e estilo de vida. Foram além: espalharam-se, transmitindo essa causa que aprenderam a amar com Jesus. Já vinte anos depois da morte-ressurreição de Jesus, já podemos perceber uma compreensão teológica dos seguidores e seguidoras do Caminho, a Igreja, bem adequada para lidar com as questões próprias do tempo. É o caso, por exemplo, do pensamento teológico de Paulo, que sistematizou muitos temas e questões importantes para a fé, que não foram tratadas por Jesus – pelo menos não, segundo as narrativas evangélicas. A fé é viva!
Nem tudo são flores, no entanto. A apropriação do discurso religioso como forma de assegurar o poder é uma tentação que ronda, continuamente, cristãos e cristãs de todos os tempos. O cristianismo que cede ao poder é um cristianismo que se perdeu de Jesus. A maneira como as igrejas cristãs, muitas vezes, pregam sua fé, revela que o afastamento com a causa primeira, que é a causa de Jesus, é um desvirtuamento do Evangelho, que deveria ser fonte permanente do pensamento e agir cristãos. Cristianismos sem Jesus – pelo menos sem aquele dos evangelhos – estão cada vez mais comuns: apropriam-se de variados espaços de poder, contribuindo para a alienação das pessoas e a manipulação da consciência.
Nos cristianismos apregoados por muitos e muitas, por aí, somos levados a acreditar que Jesus Cristo, o inaugurador de um movimento de seguidores e seguidoras do Reino, não seria, de modo nenhum, bem-vindo, caso não se adequasse aos discursos moralistas, intolerantes e cediços de poder. Provavelmente Jesus teria que fazer um curso online com o Pe. Paulo Ricardo, ou tornar-se expectador assíduo do Vitória em Cristo, do Pr. Silas Malafaia. Esses e tantos outros jogam no lixo o específico da pregação de Jesus, para promover um cristianismo alheio ao Evangelho e de total desserviço ao Reino de Deus.
Querem ensinar o cristianismo a Jesus, que fez da sua vida uma inspiração a que as pessoas pudessem viver sua fé de modo conscientemente livre e por amor. Dostoiévski captou muito bem a tentação de quem usa da religião como forma de exercer poder, em seu magistral Os Irmãos Karamazóvi. As figuras desses que ignoram a exortação de Jesus, a que se mantenham livres da tentação do poder que oprime e domina, estão eternizadas na personagem d’O Grande Inquisidor que, convenhamos, já superou em muito o gênero literário de lenda. O silêncio do Jesus Crucificado por força da religião, frente a tantos inquisidores, revela-nos a fraqueza do poder, que precisa sempre recorrer ao grito autoritário para fazer valer sua inexistente força. Quanto aos que se pretendem, evangelicamente, seguidores e seguidoras de Jesus, façamos ecoar o sussurro do Espírito; o sussurro revolucionário do amor; o sussurro de um cristianismo que não se perde de Jesus e que, continuamente, aprende com ele.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário