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O que resta são cadáveres enterrados na lama sem jazigo, lápide, epitáfio.
A foto que levou o sul-africano Kevin Carter da glória ao suicídio.
Por Marco Lacerda*
O que querem os abutres que agora sobrevoam Brumadinho? O corpo de uma mulher bonita e gostosa, de um rapagão de tórax malhado pela lida da vida ou a carne tenra de uma criança que mal aprendeu a andar? Tanto faz para os urubus que sobrevoam a área de tragédia. Agora é tudo carniça detectável com precisão cirúrgica pelo olfato faminto dessas aves companheiras da morte.
Por ironia, são elas que servem de bússolas aos bravos e incansáveis bombeiros de Minas já indicados ao Prêmio Nobel da Paz. Com calma e paciência inabaláveis estão de plantão nos galhos secos próximos à lama, dispostas a devorar tudo, até que não sobre nada que se possa chamar de gente, o que seria o último alento dos entes amados de quem lá está sepultado num jazigo sem lápide nem epitáfio – um tipo de ser que devora tudo com a mesma voracidade feroz, sem preconceito de raça, credo ou opção sexual.
O que antes era mineradora, agora é barro fétido. O que antes era lugar de trabalho e de produção agora é um cemitério de enterrados vivos pela ganância insaciável de psicopatas de colarinho branco dispostos a nos manter numa esquina esquecida do mundo que hoje, mais que nunca, faz por merecer o nome de América Latrina.
A foto que ilustra este texto (acima) deu fama mundial ao sul-africano Kevin Carter, concedendo-lhe o prêmio Pullitzer de 1994. Carter tirou a fotografia no Sudão, quando lá foi fotografar a imensa tragédia da fome causada pela guerra civil. Nas planícies desérticas Carter deparou-se com uma menina que rastejava em direção a um distante posto de alimentação, enquanto era observada por um abutre.
Kevin registrou a imagem antológica, enxotou o abutre e partiu junto com outros jornalistas em busca de outros temas. Não se sabe o que aconteceu com a menina, abandonada à própria sorte, mas, julgando pela sua condição e sabendo que milhares morreram de fome no Sudão naquela altura, não é difícil imaginar o seu destino.
O posterior peso na consciência, aumentado pela popularidade trazida pela imagem e pela curiosidade mundial em saber o "porquê" da escolha de ser observador e não salvador, provou ser pesado demais para Kevin Carter. Pouco depois do prêmio ele se matou.
“Morte vela, sentinela sou
Do corpo desse meu irmão que já se foi
Revejo nessa hora tudo que ocorreu
Memória não morrerá”.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total.
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