terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A morte de Ricardo Boechat

domtotal.com
'Que suco o Boechat não iria fazer com os laranjas de Bolsonaros e bolsominions'.
Perde o jornalismo brasileiro um de seus mais sérios representantes, justamente no momento em que o governo eleito declarou guerra contra a imprensa
Perde o jornalismo brasileiro um de seus mais sérios representantes, justamente no momento em que o governo eleito declarou guerra contra a imprensa (Reprodução Band)
Por Alexis Parrot*

No momento em que colocava o ponto final no artigo que deveria ser publicado hoje, fui tomado de assalto pela notícia da morte de Ricardo Boechat. A crítica da novela das sete da Globo vai ter que esperar até semana que vem para vir à luz no site. Tudo ficou em segundo plano após a queda daquele helicóptero no rodoanel de São Paulo.

Sento em frente ao computador desta vez não para analisar ou formular teses - o exercício semanal que venho cumprindo há dois anos e meio, desde que me dispus a dividir com os leitores do Dom Total minha visão crítica sobre a televisão.

Desta vez, a tarefa é outra, mais solene e triste; mas refuto a ideia de um obituário. Tenho certeza que estes irão povoar a imprensa durante todo o dia e, se o leitor desejar saber em detalhes quem foi ou o que fez o Boechat não lhe faltarão fontes. Existem outras maneiras de celebrar a trajetória de alguém.      

Por outro lado, sou avesso a pieguices e não acredito que a morte por si só seja motivo suficiente para o endeusamento de ninguém. Desde muito cedo, aprendi com o conselho materno que reconhecimento bom é aquele que chega enquanto ainda estamos vivos.

Com isto em mente, gostaria de rememorar Boechat com alguma opinião que já escrevi sobre ele; algo que pode mostrar o vazio que ele deixa:  

 ...No meio de tanta parcialidade, há porém, um laivo de esperança: o Jornal da Band. Conduzido com seriedade por Ricardo Boechat, é o jornal que, além de apresentar um maior número de notícias, faz isso de maneira clara e inteligente.

 De todos os telejornais é, de longe, o que traz a melhor cobertura política - dando nome aos bois e com a isenção que falta a todos os outros jornalísticos da nossa TV aberta. Até o uso da meteorologia é pensado para ir além da óbvia previsão do tempo.

 Aqui não há espaço para graçolas, o serviço de utilidade pública está presente (como na matéria exibida nesta segunda sobre o lançamento de planos populares de saúde e o risco que o consumidor corre com eles), além do posicionamento crítico do âncora sempre que necessário. Entre outros assuntos, é um dos únicos jornalistas na televisão que questiona abertamente as opiniões sempre sectárias de Gilmar Mendes.

 A postura de Boechat é exemplar e serve também como antídoto para aqueles que, como Zezé de Camargo, se acham muito "politizados". Em depoimento a Leda Nagle, em seu canal no Youtube, o sertanejo afirmou (entre outros absurdos) gostar de ver várias versões da mesma notícia: primeiro no Jornal Nacional, depois na Globonews. Piada pronta e de mau gosto.

 (A morte do telejornalismo no Brasil?, publicado em 19/09/2017)

Antes disso, por conta de decisão judiciária a favor de Gilmar Mendes contra a jornalista e atriz Monica Iozzi - que se pronunciou via twitter, questionando habeas corpus dado ao médico Roger Abdelmassih pelo ministro do STF - registrei como Boechat deu a notícia:

Sobre essa questionável decisão, não veio da televisão a crítica mais lúcida, veio do rádio - na voz de Ricardo Boechat, em seu programa na Band News FM. Tendo como mote uma das frases publicada por Iozzi na rede social ("...se um ministro do Supremo Tribunal Federal faz isso, nem sei o que esperar."), o âncora Boechat passou a dirigir-se diretamente ao ministro.

 Vale a pena a transcrição de alguns trechos de sua fala:

 "Ministro Gilmar Mendes, me desculpe. Eu vou colocar como minhas as declarações da Monica Iozzi... Não me parece, ministro, que o ofendo quando digo ao senhor, diante desta e de outras decisões suas, que eu não sei o que esperar do senhor... A natureza humana é tão misteriosa; quem é capaz de dizer o que se pode esperar do senhor? Por que eu sou obrigado a dizer que só posso esperar do senhor coisas bonitinhas, maravilhosas ? - Aliás, essa decisão relacionada ao Abdelmassih, nem acho a mais grave que o senhor já tomou. Do meu ponto de vista, o senhor já tomou decisões como magistrado muito mais assombrosas do que essa."

 ..."Isso é uma piada, uma brincadeira, que o ministro da mais alta corte do país se exponha ao ridículo de processar uma jornalista por um delito de opinião (ainda que não tenha sido, na minha opinião; não teve delito nenhum)... Vou repetir a frase dela: 'Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a Roger Abdelmassih depois de sua condenação a 278 anos de prisão por 58 estupros. Se um ministro do Supremo Tribunal Federal faz isso, nem sei o que esperar.' Eu também não sei, ô Gilmar. Vai me processar também ?"

 A contundência e seriedade do questionamento de Boechat é de se tirar o chapéu. Lembra da ocasião em que ele criticou duramente o pastor Silas Malafaia, por detrás da bancada do telejornal da Band, onde também é o âncora.

 Em outros veículos, a notícia foi apenas registrada ou nem dada, em alguns casos. Porque apresentadores não se tornam âncoras apenas por ter um crachá pendurado no pescoço.

...(Cá entre nós: para ser âncora, antes de mais nada, há que se ter coragem.)

 (Âncora: um apresentador com opinião, publicado em 11/10/2016)

Com o desaparecimento de Boechat, perde o jornalismo brasileiro um de seus mais sérios representantes, justamente no momento em que o governo eleito declarou guerra contra a imprensa. Que suco o Boechat não iria fazer com os laranjas de Bolsonaros e bolsominions (que, de tão numerosos, mais parecem um laranjal a cada dia que passa) ...

Homem imperfeito como qualquer outro, errou também - mas caiu e se levantou para brilhar com mais força, quer seja na TV ou no rádio, sempre indignado contra qualquer desmando. É admirável simplesmente porque cumpriu a fundo o que se propôs a fazer como jornalista: questionar o poder de igual para igual, sem medo - provavelmente, o seu maior legado.  

*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

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