quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O papa Francisco pede uma 'batalha total' contra o mal do abuso sexual

domtotal.com
O papa foi além de uma revisão dos dados para expor o que discerniu como a força subjacente por trás dos abusos.
O papa Francisco celebrou a missa final da reunião de líderes católicos em torno da reflexão sobre a prevenção do abuso sexual de clérigos e a proteção das crianças contra os padres abusadores.
O papa Francisco celebrou a missa final da reunião de líderes católicos em torno da reflexão sobre a prevenção do abuso sexual de clérigos e a proteção das crianças contra os padres abusadores. (Giuseppe Lami/Pool Foto via AP)
Por Gerard O'Connell

Em sua palestra de encerramento no encontro do Vaticano para a proteção de menores, o papa Francisco ofereceu uma ampla análise da praga do abuso sexual de menores no mundo e na Igreja Católica. Francisco comprometeu a igreja a fazer todo o possível para erradicá-la de dentro da própria igreja e da sociedade como um todo.

"Estamos diante de um problema universal, tragicamente presente em quase toda parte e afetando a todos", disse o Papa Francisco em uma palestra de 30 minutos no final da missa, celebrada na Sala Régia, ao lado da Capela Sistina, com os patriarcas, cardeais, bispos e padres que participaram da reunião de quatro dias sobre a proteção de menores.

O arcebispo australiano Mark Coleridge, de Brisbane, fez a homilia na missa de encerramento da reunião, dizendo que, como a descoberta de Nicolau Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol, a Igreja precisa de uma "revolução copernicana" onde "aqueles que sofreram abusos não acabem girando em torno da igreja, mas a igreja em torno deles".

“Ao descobrir isso, podemos começar a ver com os olhos e a ouvir com os ouvidos; e uma vez que fazemos isso, o mundo e a igreja começam a parecer bem diferentes”, disse o papa. “Esta é uma conversão necessária, a verdadeira revolução e a grande graça, que pode abrir para a igreja uma nova temporada de missão”.

A palestra do papa Francisco surpreendeu os comentaristas da mídia porque não forneceu nenhuma das “medidas concretas” que havia pedido no início do encontro em 21 de fevereiro. Fontes bem informadas que participaram do evento, no entanto, disseram à América que viriam mais tarde, através de um acompanhamento substancial e sustentado do progresso do encontro.

De fato, no momento de conclusão, Frederico Lombardi, SJ, que atuou como moderador do encontro, anunciou que o Papa Francisco emitirá um motu próprio (documento que papa escreve por própria iniciativa) "sobre a proteção de menores e pessoas vulneráveis" e que "este documento acompanhará uma nova lei" do Estado da Cidade do Vaticano e as orientações para o vicariato da Cidade do Vaticano sobre o mesmo assunto”.

Lombardi disse em um comunicado que o papa "expressou a intenção de criar forças-tarefa de pessoas competentes para ajudar as conferências episcopais e as dioceses que têm dificuldade em enfrentar os problemas e produzir iniciativas para a proteção de menores".

“Esses primeiros passos são sinais encorajadores que nos acompanharão em nossa missão de pregar o Evangelho e de servir a todas as crianças do mundo, em solidariedade mútua com todas as pessoas de boa vontade que quiserem abolir toda forma de violência e abuso contra menores” apontou o jesuíta.

Em sua palestra de encerramento, o Papa Francisco forneceu dados que demonstram que o abuso sexual de menores é predominante em primeiro lugar nas famílias. Mas, como ele apontou, as estatísticas "não representam a extensão real do fenômeno... porque muitos casos de abuso sexual de menores não são relatados, particularmente o grande número cometido dentro das famílias".

Francisco também observou que a “angústia tragicamente leva à amargura, até ao suicídio, ou às vezes até a vingança, fazendo a mesmo que outrora fizeram com eles. A única coisa certa é que milhões de crianças no mundo são vítimas de exploração e abuso sexual”.

O papa, no entanto, foi além de uma revisão dos dados para expor o que discerniu como a força subjacente por trás de tudo isso: “Hoje nos encontramos diante de uma manifestação do mal descarado, agressivo e destrutivo. Por trás e por dentro da Igreja, existe o espírito do mal, que em seu orgulho e em sua arrogância se considera o Senhor do mundo e pensa que triunfou”.

Falando como “pastor da igreja”, o Papa Francisco disse: “Nestes casos dolorosos, vejo a mão do mal que não poupa nem mesmo a inocência dos pequenos. E isso me leva a pensar no exemplo de Herodes que, impelido pelo medo de perder seu poder, ordenou o massacre de todos os filhos de Belém”.

Não obstante a natureza mundial do problema, o Papa Francisco apontou que "precisamos deixar claro que, embora afetando gravemente nossas sociedades como um todo, esse mal não é menos monstruoso quando ocorre dentro da igreja".

De fato, ele disse, “a brutalidade deste fenômeno mundial se torna ainda mais grave e escandalosa na igreja, pois é totalmente incompatível com sua autoridade moral e credibilidade ética”. Francisco enfatizou o fato de que “pessoas consagradas, escolhidas por Deus para guiar as almas para a salvação, deixam-se dominar pela sua fragilidade ou doença humana e, assim, tornam-se ferramentas de Satanás”.

Como líderes da igreja, Francisco disse: “precisamos reconhecer com humildade e coragem que estamos frente a frente com o mistério do mal, que atinge mais violentamente os mais vulneráveis, pois são uma imagem de Jesus”.

Por esta razão, ele coloca, "a igreja tem se tornado cada vez mais consciente da necessidade não apenas de refrear os casos mais graves de abuso por meio de medidas disciplinares e processos civis e canônicos, mas também para confrontar o fenômeno dentro e fora da igreja".

Francisco disse que a igreja "se sente chamada para combater este mal que atinge o coração de sua missão, que é pregar o evangelho aos pequenos e protegê-los de lobos vorazes".

Também deixou inequivocamente claro, no entanto, que “se na igreja emergir até mesmo um único caso de abuso - que já em si representa uma atrocidade - esse caso será enfrentado com a maior seriedade”. Ele não usou a expressão “tolerância zero”, como fez antes e como as vítimas esperavam que fizesse, mas não deixou dúvidas de que ações decisivas seriam tomadas em todos os casos de abuso.

Francisco disse que “na ira justificada das pessoas, a igreja vê o reflexo da ira de Deus, traída e insultada por essas pessoas consagradas e enganosas”. Além disso, apontou para “o choro silencioso dos pequeninos que, em vez de encontrar neles, pais e guias espirituais encontraram atormentadores, que sacudiram os corações embotados pela hipocrisia e pelo poder”.

Resumindo a discussão do encontro, o Papa Francisco disse que “a partir de hoje, o objetivo da igreja será ouvir, vigiar, proteger e cuidar de crianças abusadas, exploradas e esquecidas, onde quer que elas estejam”. Todavia, “para alcançar esse objetivo, a igreja deve superar as disputas ideológicas e as práticas jornalísticas que muitas vezes exploram, para vários interesses, a própria tragédia vivida pelos pequenos”.

Francisco disse que “chegou a hora de trabalhar juntos para erradicar este mal do corpo de nossa humanidade, adotando todas as medidas necessárias já em vigor em nível internacional e eclesial”.

Neste contexto, disse ele, é necessário “encontrar um equilíbrio correto de todos os valores em jogo” e “fornecer diretrizes uniformes para a igreja, evitando os dois extremos de um 'justicialismo' provocado pela culpa por erros passados e pela pressão da mídia - talvez referindo-se a uma espécie de reação da multidão - e uma atitude defensiva que não consegue confrontar as causas e os efeitos desses graves crimes, referindo-se àqueles que ainda não compreenderam a gravidade da situação.

O papa procurou localizar o abuso de menores pelo clero na realidade mais ampla, mostrando que o abuso sexual de menores é generalizado no mundo. “É difícil entender o fenômeno do abuso sexual de menores sem considerar o poder”, ele disse, “já que é sempre o resultado de um abuso de poder, uma exploração da inferioridade e vulnerabilidade do abusado, o que torna possível manipulação de sua consciência e de sua fraqueza tanto psicológica, como física”.

Ele pediu a todos os católicos que ajudem a Igreja a ser libertada "da praga do clericalismo, que é o solo fértil para todas essas desgraças".

“Eu faço um apelo sincero por uma batalha total contra o abuso de menores, tanto sexualmente quanto em outras áreas, por parte de todas as autoridades e indivíduos, pois estamos lidando com crimes abomináveis que devem ser apagados da face da terra”, disse o papa.


America Magazine - Tradução: Ramón Lara

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