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A péssima oratória do presidente, além de produzir piadas prontas, serve também para nos distrair do que de fato era importante ali, a mentira contada.
Os vídeos só confirmam o despreparo generalizado que assola Brasília
desde o primeiro de janeiro. (Reprodução / Facebook)
Por Alexis Parrot*
A Televisão brasileira é pródiga em programas de mau gosto e reputação duvidosa. Neste campo, o SBT sempre esteve na ponta, esmerando-se historicamente em engrossar as fileiras do mundo cão televisivo. São de sua responsabilidade atrações que marcaram época, como o Aqui Agora e O Povo na TV; e outros mais longevos e ainda no ar, como o Programa do Ratinho e Casos de Família.
Apesar da excelência da emissora paulistana no que diz respeito ao bizarro e ao inadequado, quadros e "reportagens" do Domingão do Faustão, da Luciana Gimenez, do Pânico na TV, do Gugu, da Sonia Abrão, ou qualquer coisa que o João Kleber tenha feito, faça ou venha a fazer, não ficam muito atrás.
Já que o assunto é baixaria, fizeram história o Sushi Erótico, Rodolpho e ET, Latininho, Teste de Fidelidade, Teste de DNA, a Banheira do Gugu, Tiazinha e Feiticeira, e mesmo a humilhação consentida de milhares, por anos a fio, no Topa Tudo por Dinheiro do patrão Silvio.
A lista é longa, mas nada chega aos pés do que pudemos assistir na última quinta-feira; a estreia da live semanal de Bolsonaro no Youtube. Grotesco tanto em forma quanto em conteúdo, é acintosa - pelo que diz e pelo que não diz - do primeiro ao último minuto. Foi a maneira que os gênios da comunicação do exército encontraram para conter a coleção de crises que o governo, os filhos e aliados do presidente conseguem gerar ininterruptamente, sem entender que a emenda sempre sai pior que o soneto.
Nos mesmos moldes em que produzia seus vídeos de campanha, sem a preocupação com nenhum apuro técnico, Bolsonaro, ladeado pelos Generais Augusto Heleno, ministro do GSI, e Rêgo Barros, porta-voz, iniciou a live referindo-se ao discurso que havia feito naquela manhã para fuzileiros no Rio: "... pra variar, vai dar polêmica em dado momento, quando eu falei que no Brasil nós devemos às forças armadas a nossa democracia e a nossa liberdade... e essa fala já começou a levar pro lado das mais variadas explicações possíveis."
A péssima oratória do presidente, além de produzir piadas prontas, serve também para nos distrair do que de fato era importante ali, a mentira contada.
O que ele realmente disse na presença dos integrantes da marinha foi: "... democracia e liberdade só existe quando a sua respectiva forças armadas assim o querem." A citação é ipsis litteris e, a julgar pela inépcia para concordar plurais, não poderia restar dúvidas de que saiu mesmo da boca do capitão tão desconjuntada e perigosa frase.
Existem dois graves problemas aí: primeiro, a cegueira ideológica que o obriga a louvar o exército a cada três palavras proferidas. Segundo, a gigantesca incapacidade léxica de Bolsonaro, que o torna incapaz de entender que não são a mesma coisa o que diz e o que queria ter dito. Não adianta espernear e argumentar que não disse o que falou; que as interpretações da imprensa é que distorcem o seu discurso. O fato é que o homem não sabe falar ou não sabe o que diz. E ponto final.
Para chamar o General Heleno para a conversa, Bolsonaro questionou se ele achava que o seu pronunciamento havia deixado alguma dúvida "no tocante a que as forças armadas no Brasil sempre estiveram ao lado da democracia e da liberdade". Heleno, bom general como é, foi rápido na resposta, transformando o que até então era teatro do absurdo em comédia rasgada: "Não, claro que não."
A partir daí, passou a explicar o que o presidente queria ter dito (e não o que foi dito). O atarracado general acumula agora nova função no governo. Além do Gabinete de Segurança Institucional, também é sua a responsabilidade de produzir legendas automáticas, via redes sociais, para as asneiras que o presidente fala.
Afirmou que as nossas forças armadas são o pilar da liberdade e da democracia brasileiras, dando como contraponto Venezuela e Cuba; que Maduro só não cai porque os militares venezuelanos ainda o apoiam e que foram as forças armadas cubanas que "mantiveram a ditadura" durante tantos anos. Para o dileto general, ditadura é prática exclusiva das esquerdas.
E assim, encerrou-se o assunto. Para Bolsonaro está tudo bem desde que esteja tudo bem para os generais. Se pudemos aprender algo de genuíno com a TV do presidente, é que vivemos sob a tutela disfarçada de uma junta militar. Ele mesmo, não passa de um youtubber. Pede, inclusive, que os internautas deixem perguntas nos comentários da publicação para serem respondidos em próximos episódios da série.
Na TV aberta tradicional, os jornais locais da Globo já usam do expediente, comum nos canais de redes sociais há algum tempo. Querem ser modernos, ao tentar se aproximar da interatividade da internet, mas resultam anacrônicos ao retornar às origens da TV, as narrativas radiofônicas, onde o ouvinte é parte integrante do show.
E, como tudo é controlado por um administrador, é evidente que apenas mensagens congratulatórias são selecionadas para ir ao ar. (Sempre me pergunto qual seria o sentido jornalístico de acrescentar este tipo de autoelogio a um telejornal.) Para os comentários críticos ou de oposição, o destino certo é a lixeira dos itens deletados e indesejados do computador. Evidentemente, não há como esperar atitude diferente da TV Bolsonaro.
Com o avançar do programete, outra acusação foi rebatida, o gasto de mais de um milhão de reais nos dois primeiros meses de governo nos cartões corporativos que cuidam das despesas da Presidência. Botou-se a culpa na cerimônia de posse, no Temer e no General Mourão, para justificar o aumento de 14% nestes gastos, em comparação com o praticado nos últimos quatro anos. E não se fala mais nisso, tá ok? - Mesmo que as satisfações dadas não tenham sido satisfatórias, como é a praxe no estilo autoritário do bolsonarismo.
No dia seguinte à estreia da TV do Bolsonaro, foi a vez da Damares, a ministra da Mulher, Família, Direitos Humanos e pés de goiaba em geral, apresentar a campanha que seu ministério preparou para combater a violência contra a mulher. Seguindo as regras estabelecidas pelo seu comandante em chefe, a peça de vídeo é também um pequeno show de horrores.
Segundo os créditos da própria peça, o vídeo foi realizado por servidores do Ministério e profissionais voluntários, sem qualquer custo para a administração pública. Muito admirável seria se alguém tivesse desembolsado um tostão sequer para produzir aquilo.
Nada funciona no tal vídeo. A começar pela duração, desnecessariamente longa demais; pela trilha sonora mais alta que a voz dos depoimentos e narração; pela edição melodramática, digna dos programas de pastores de Record que varam as madrugadas; e chegando até ao próprio conceito da campanha, de um equívoco sem igual.
Profissionais de beleza (cabeleireiros, maquiadores, etc.) são convocados a abordar as clientes se sentirem que abusos possam estar sendo cometidos por seus maridos e companheiros, incentivando-as a denunciar as ocorrências.
A estrela do vídeo é o maquiador uruguaio, evangélico e Instagrammer Agustín Fernandez, que gerou revolta entre a comunidade LGBTQ ao apoiar publicamente a candidatura de Bolsonaro no ano passado. Além de Fernandez, a delegada da PF Sandra Melo e uma psicóloga dão longos e repetitivos depoimentos sobre a questão. Melo cita o feminicídio em seu discurso - o que vai contra a abordagem que o presidente deseja para o tema. Ele já deixou claro em várias oportunidades que para ele isso não existe.
Mais uma vez, o governo bate cabeça. Sem políticas claras, é mais que natural a falta de alinhamento entre seus integrantes. Os vídeos só confirmam o despreparo generalizado que assola Brasília desde o primeiro de janeiro.
O que é a tal live do Bolsonaro, afinal? Um programinha rastaquera de TV, mal feito e mal conduzido, transmitido em cadeia global via internet, para justificar os erros de um governo errático por natureza. Além disso, serve para dar um impressão falsa de transparência e afirma que a imprensa pode e deve ser eliminada dos processos de informação - fato corriqueiro apenas em ditaduras.
Muito curiosamente, ao assistir à estreia da TV Bolsonaro, salta aos olhos uma estranha característica do General Heleno: a capacidade de falar sem abrir a boca. Uma vez estabelecido que ele é o ventríloquo da trupe, resta descobrir quem é o boneco do ventríloquo.
Alguém arrisca um palpite?
(TV Bolsonaro - todas as quintas, às 18:30h, no Youtube.)
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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