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Termos como: 'clérigos progressistas', 'bispos vermelhos' ou religiosos e religiosas 'esquerdistas' são geralmente usados para desacreditar católicos em movimentos sociais.
Preservar os povos da floresta não é uma missão exclusiva da Igreja Católica nem uma questão de agenda esquerdista. (Ueslei Marcelino/ Reuters)
Por Filipe Domingues
O Sínodo dos Bispos deste outono na região Pan-Amazônica já está aumentando as tensões entre a Igreja Católica no Brasil e o populista governo de direita do presidente Jair Bolsonaro. O jornal O Estado de São Paulo informou em 10 de fevereiro que o governo acredita que a reunião de bispos promoverá uma "agenda esquerdista". Segundo o jornal, os ministros militares "veem a igreja como um adversário em potência" e pretendem "neutralizar” eventuais críticas ao governo durante o Sínodo.
O Sínodo sobre o tema “Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral” foi anunciado pela primeira vez pelo Papa Francisco em 2017 e será realizado em outubro, em Roma. O encontro incluirá representantes de nove países da região amazônica: Brasil, Bolívia, Peru, Venezuela, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Guiana e Suriname.
De acordo com O Estado de S. Paulo, o governo Bolsonaro teme que os líderes “esquerdistas” da Igreja Católica preencham o vazio criado pela esquerda política enfraquecida do Brasil, que perdeu apoio popular e força institucional após a eleição presidencial do ano passado. Uma onda conservadora liderada por Bolsonaro levantou muitos candidatos de direita em janeiro passado.
Documentos internos escritos pelas autoridades da agência nacional de inteligência e de comandantes militares brasileiros supostamente discutem os recentes encontros de bispos com o Papa Francisco no Vaticano, em preparação para o Sínodo.
O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Nacional e um dos conselheiros mais próximos de Bolsonaro, disse ao jornal que há, de fato, uma forte preocupação. "Há muito tempo existe a influência da igreja e das ONGs na Amazônia", disse o general Heleno, segundo o relatório. Em sua opinião, o trabalho do governo é “fortalecer a soberania brasileira e evitar que interesses estrangeiros prevaleçam na região”.
Uma fonte da igreja no Brasil disse à América Magazine que alguns membros das forças armadas se ressentem da influência e popularidade da Igreja Católica na Amazônia.
Perguntado por jornalistas sobre a precisão dos relatórios, o escritório de segurança afirmou em um comunicado de imprensa que "a Igreja Católica não é objeto de qualquer tipo de ação" pela inteligência nacional. Confirma, no entanto, que o próprio ministro está preocupado “com alguns pontos da agenda do Sínodo sobre a Amazônia” por causa de questões de “soberania nacional”.
A declaração continua: “Reiteramos a compreensão do Escritório de Segurança Nacional de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia brasileira”. Há relatos de que diferentes ministérios estarão envolvidos no monitoramento da reunião dos bispos, bem como das embaixadas do Brasil no Vaticano e na Itália.
No que é visto como uma resposta indireta às notícias do dossiê do governo sobre o Sínodo, o bispo Leonardo Steiner, secretário-geral da Conferência dos Bispos do Brasil, gravou um pequeno vídeo para as mídias sociais, descrevendo o Sínodo para a região Pan-Amazônica como "Uma celebração da Igreja e para a Igreja."
O Vaticano se recusou a comentar o assunto. O secretário geral do Sínodo dos Bispos, Cardeal Lorenzo Baldisseri, disse à América por e-mail: “A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através de seu secretário geral, Dom Leonardo Steiner, já prestou os esclarecimentos necessários”.
No Brasil, referências como: “clérigos progressistas”, “bispos vermelhos” ou religiosos e religiosas “esquerdistas” são geralmente usados para desacreditar os católicos envolvidos em uma variedade de movimentos de justiça social. Sacerdotes, religiosos e leigos de todo o país trabalham com pequenos agricultores, trabalhadores sem-terra, migrantes, indígenas e pobres através de grupos como a Comissão Pastoral da Terra e o Conselho Indigenista Missionário. Enquanto alguns ativistas estão diretamente envolvidos na política, outros adotam uma abordagem apartidária.
Alguns sacerdotes e religiosos estavam entre os membros fundadores do Partido dos Trabalhadores do Brasil (conhecido como o P.T.) na década de 1980, anos em que o país foi governado por uma ditadura militar repressiva. Enfraquecido ao longo dos anos pela corrupção sistêmica, o P.T. perdeu o apoio de muitos católicos que trabalham pela justiça social. Bolsonaro, um defensor do populismo de direita, derrotou o P.T. nas eleições presidenciais do ano passado.
Segundo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Centro de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e comentarista de religião na mídia brasileira, o governo de Bolsonaro vê a “esquerda” como sua principal inimiga.
"De fato, há muitos católicos com posições de esquerda - como também há os que pertencem à direita", disse Ribeiro Neto. Mas ele trouxe à tona a ideia de que o Sínodo da Amazônia tinha uma agenda política. Seus objetivos, ele aponta, “estão ancorados no ensino social da igreja”.
“Um Sínodo da Amazônia deve se concentrar nos desafios locais para a evangelização. Não é uma invenção ideológica do momento, mas o reconhecimento da necessidade de uma ação evangelizadora que seja bem refletida e consciente”, falou Ribeiro Neto.
Preservar os “povos da floresta” não é uma missão exclusiva da Igreja Católica nem uma questão de “agenda esquerdista”, acrescentou. Ribeiro Neto observou que grande parte da população da região “está excluída dos processos de desenvolvimento humano e socioeconômico devido à pobreza e ao isolamento geográfico imposto pela floresta”.
“Existe um consenso tecnocientífico, e não ideológico, de que a ocupação das florestas tropicais não deve ser feita nos mesmos moldes da ocupação das zonas temperadas”, disse o professor. “O reconhecimento dos direitos humanos e da dignidade de todas as populações, independentemente de sua condição econômica ou social ou etnia, também é aceito mundialmente como uma condição para a coexistência democrática e a paz. O problema é que o governo Bolsonaro se colocou, ideologicamente, em oposição a esses consensos”.
O presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica e conselheiro próximo do papa Francisco na Amazônia, o cardeal Claudio Hummes, também declarou em um vídeo que não é a intenção da Igreja “promover uma nova nação” na Amazônia.
Ele disse aos Estados Unidos que, para proteger os “pequenos” - os pobres e os que vivem à margem - a Igreja deve dialogar com todos os atores que detêm interesses na Amazônia: empresas internacionais, cientistas, militares, governos nacionais e locais - mesmo que, às vezes, sejam hostis à sua mensagem.
“A Igreja deve sempre tentar o caminho do diálogo. Alguns [desentendimentos] serão irredutíveis, mas buscaremos uma cultura de encontro. A Igreja não deseja construir uma nova Amazônia. Se alguém o vê de maneira diferente, falaremos com essa pessoa”, disse o cardeal.
Em uma palestra aos seminaristas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 19 de fevereiro, o cardeal Hummes lembrou que a encíclica “Laudato Si” do papa Francisco é mais do que uma explicação sobre por que a Igreja deveria se engajar em questões ambientais.
“Formaremos uma rede porque não podemos agir por conta própria. Somente com a ajuda de Deus podemos unir forças para cuidar de nosso lar comum”, disse o cardeal.
O cardeal Hummes apoia a ideia do Papa Francisco de que “o dinheiro é o principal obstáculo no caminho para o reino de Deus”. O arcebispo emérito de São Paulo e ex-prefeito da Congregação para o Clero tem sido amigo íntimo do papa desde que Jorge Mario Bergoglio foi arcebispo de Buenos Aires.
“Precisamos encontrar novos modelos de desenvolvimento que respeitem a Amazônia. Atualmente, é um alvo para o colonialismo: pessoas e organizações vêm e querem instalar seus modelos sem pedir permissão às populações locais, nem respeitar suas origens e tradições. Até a igreja fez isso”, ele admitiu.
Para o cardeal, o principal objetivo deste Sínodo é claro: encontrar novos caminhos para a igreja na Amazônia. Isso inclui situar a igreja em um contexto global de questões ambientais e “defender a possibilidade de salvar o planeta”.
“Cuidar da terra é uma missão que Deus nos entregou. É uma missão da igreja, e ela não pode se afastar dela - não apenas na Amazônia, mas vamos pensar também em outros lugares, por exemplo, na Bacia do Congo”, disse o cardeal Hummes. O Sínodo também trata de superar um "paradigma tecnocrático", disse ele, e promover uma "ecologia integral".
“Somos uma fruta deste planeta, criado por Deus. E Deus se encarnou em Jesus Cristo e tornou-se assim essa interconexão permanente”, disse o cardeal Hummes. "Tudo está interligado em nossa casa comum."
America Magazine - Tradução: Ramón Lara
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