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Antes de dormir, queria agradecer por viver em um país que tem
as montanhas de Minas. (Ricardo Sousa/Pinterest)
Por Ricardo Soares*
Ah, os distúrbios do sono nesses tempos tão conturbados em que nos roubam os sonhos, esperanças e utopias, no qual os boletos não param de vencer, as chuvas caem sem piedade, a insegurança e intolerância aumentam, os desrespeitos aos direitos navegam a vela solta. Como dormir com barulhos como esse? Mas, calma! Hoje, não vou colocar azeitona azeda nessa empada-crônica e, sim, agradecer o outro lado disso tudo.
Pois então, antes de dormir, gostaria de agradecer às poucas árvores que não nos caem sobre as cabeças, nos dando sombras das quais precisamos e não as sombras metafóricas das quais os zumbis do obscurantismo se alimentam. Gostaria de agradecer a todos que entendem as piadas, mesmo as politicamente incorretas, pois aqui e agora é preciso humor e amor. Só humor, amor e arte nos salvam.
Antes de dormir, queria agradecer por viver em um país que tem as montanhas de Minas, mesmo que escalavradas pela sanha do minério. Queria agradecer pelas dunas de Jericoacoara, pelos Lençóis Maranhenses, pela fartura e imensidão do Pantanal, poético ou não, de Manoel de Barros. Agradecer pelo Rio de Janeiro, predado e sempre lindo, apesar de tudo e toda sua plêiade de artesãos da palavra que por lá viveram desde sempre. De Antonio Maria a Rubem Braga, de Carlinhos de Oliveira a Paulo Mendes Campos, de Carlos Heitor Cony a Carlos Drummond de Andrade, passando por Clarice Lispector, João do Rio, Mário Lago e muitos mais.
Antes de dormir, queria agradecer que, apesar de estarem trabalhando para destruir tijolo por tijolo desse país nada sólido, aqui foram erguidos alicerces de uma civilização só nossa, a almejada e ultrajada "Terra Brasilis". Uma terra que teve e sempre terá (porque são infinitos e permanecerão) Tom Jobim, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Milton Santos , Sérgio e Chico Buarque de Hollanda, Manuel Bandeira e Mario de Andrade, Oswald e Torquato Neto, poeta nominal de caso reto.
Por tudo isso e muito mais, agradeço antes de dormir ouvindo o insuportável barulho de vocês nas caixinhas acústicas das praias lindas a nos apodrecer os ouvidos com o lixo "sertanojo". Sim, porque, apesar disso, não vão nos tirar Tim Maia, Jorge Benjor, Cassiano ou Fausto Fawcett, Rita Lee, Mutantes, os Novos Baianos.
Sim, estamos todos com o sono aos sobressaltos. Está difícil dormir neste país. Mas quem tem tudo aquilo que nominei e muito mais tem motivos para se manter acordado e resistir a essa enorme tempestade. Enfunem as velas.
*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Publicou 8 livros, dirigiu 12 documentários.
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