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São Paulo afirma que, quando não podemos orar, o Espírito intercede
por nós em 'gemidos ininteligíveis' (Pixabay)
Por Liz Dodd*
Estou ajoelhada em frente ao Santíssimo Sacramento no andar térreo de um apartamento em Clapham, ao lado de uma leiga que explica ter "me batizado no Espírito Santo". O tráfego de Londres está estrondando do lado de fora da janela, e ela está orando em línguas.
Desde a ausência de um padre, até a estranheza de sua linguagem de oração, tudo nessa cena parece subversivo. Mas é autenticamente católico, enraizado em uma tradição que antecede a escrita dos Evangelhos, foi validada pelos Padres da Igreja, abençoada pelo Concílio Vaticano II e é ensinada nos seminários em todo o mundo.
O interesse em falar em línguas - ou glossolalia - ganhou um impulso recentemente quando o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, disse em uma entrevista que fez isso todas as manhãs. Para que um líder da Igreja da Inglaterra alegremente admita algo que alguns anglicanos consideram vindo do demônio, e a maioria acha que é loucura, acaba gerando uma surpresa. Mas é apenas a ponta de um iceberg carismático dentro das Igrejas: o popular Curso Alpha espera que os participantes orem em línguas após encontrarem o Espírito Santo; no pentecostalismo, uma das religiões que mais crescem no mundo, orar em línguas é uma prova de salvação.
E não são apenas as denominações protestantes que estão experimentando esse "movimento do Espírito". Kristina Cooper, editora da revista GoodNews, da Catholic Charismatic Renewal, diz que manifestações de dons carismáticos, como falar em línguas, também estão em ascensão na Igreja Católica.
A RCC surgiu do Concílio Vaticano II, que declarou que, como os dons do Espírito, tais como falar em línguas e as curas, sempre se manifestaram na vida dos santos, ainda continuam existindo inclusive nos tempos modernos: esses dons não chegaram ao fim com a morte do último apóstolo. Encorajados por isso e pelo impulso ecumênico do Vaticano II, os católicos interessados no movimento carismático começaram a se reunir e aprender com os pentecostais e a trazer o que aprenderam de volta às suas paróquias.
Cooper descreve o auge moderno de renovação carismática como um encontro de entusiasmo leigo organizado pelo Espírito e com aprovação hierárquica: o apoio do Papa Francisco à RCC - durante as comemorações do quinquagésimo aniversário em Roma em 2017, ele disse aos membros que era uma “corrente da graça”, de inspiração inteiramente bíblica na Igreja, fato que aumentou o interesse.
Orar em línguas é um dos dons carismáticos que São Paulo lista em 1Coríntios 12, junto com as curas e as profecias. Pode se referir a “xenoglossolalia”, quando o falante usa uma linguagem natural desconhecida para eles, mas conhecida do ouvinte, como acontece com os Apóstolos no Pentecostes, contudo, a glossolalia se refere normalmente a uma pessoa falando uma língua totalmente desconhecida.
De todos os dons do Espírito, “as pessoas têm um problema com as línguas, porque você pode parecer um bobo”, admite Cooper. “É preciso um passo real de fé para entrar sem saber o que é. É preciso uma verdadeira confiança em Deus”. Sua primeira experiência de línguas veio pouco depois de seu “batismo no Espírito”, termo que os carismáticos usam para descrever uma experiência pessoal do Espírito Santo que acreditam que inflama graças conferidas pelo batismo sacramental. “Cinco meses depois, eu estava rezando para uma gravação dos monges de Weston Priory fazendo um canto gregoriano e minhas palavras começaram a se agitar um pouco”. Percebi o que chamamos de falar em línguas.
Ela descreve as línguas como uma espécie de contemplação ruidosa. “É uma oração não racional. É querer aproximar-se de Deus, mas as palavras não são suficientes. Orar em línguas é uma entrega ao Espírito que está dentro de você, um modo de se sintonizar, de abrir sua boca e confiar e abandonar o lado espiritual consciente. Pode ser bastante difícil - não é satisfatório, você não se recebe um burburinho emocional ou um zumbido intelectual. É um absurdo, e quanto mais você é uma pessoa racional e pensante, mais difícil é ceder ao dom de línguas”.
Meu temperamento é tão produtivo quanto um bloco de granito, e não apenas estou pensando demais, quando transcrevo cada palavra de nossa conversa em taquigrafia. No entanto, pergunto a Cooper se vai orar para que eu receba o dom de línguas. Ela concorda, embora gentilmente explique que é improvável que eu experimentarei as línguas imediatamente. Assim, em sua pequena capela no sul de Londres, Cooper me guia na oração de arrependimento que abrirá espaço para meu batismo no Espírito. Então começa a orar em línguas e me pede para tentar seguir. Claro que não posso. Depois de algumas frases, perco a noção e desvio-me descontroladamente do curso.
Isso continua por vários minutos, e me pergunto se um “Amém” poderia levar o experimento desconfortável a um final misericordioso. Então me parece que há sons tentando se afirmar sobre minhas tentativas de copiar Cooper. Há um momento - tangível, excitante - quando decido jogar a precaução ao vento e, de repente, novas frases ininteligíveis saem de dentro de mim como uma maré. Não é barulhento ou assustador: parece lembrar um número de telefone ou as palavras de uma música, onde cada linha segue a última sem ser recuperada conscientemente. Então acabou. "Amém", diz Cooper. "Acho que você tem o dom".
Um pouco abalada, me volto para um neurocientista. O Dr. Andrew Newberg, diretor de pesquisa do Instituto Marcus de Saúde Integrativa do Hospital Universitário Thomas Jefferson, na Filadélfia, quem lidera o campo da "neuroteologia", descrita também como "a neurociência da religião". Quando descrevo minha experiência com Kristina Cooper, o pesquisador diz que quando as pessoas oram em línguas, “muitas vezes há aquela sensação de pular, e nesse ponto o cérebro provavelmente também muda”.
Mas muda para o que? Newberg usa um método de imagem chamado SPECT para medir mudanças no fluxo sanguíneo no cérebro. Quando as pessoas oram em línguas, ele me diz, há uma diminuição no fluxo sanguíneo para os lobos frontais, que controlam a linguagem, comportamentos conscientes e intencionais. “Isso sugere que uma pessoa que fala em línguas sente como se algo estivesse acontecendo com ela. As pessoas não fazem isso acontecer com elas mesmas. Isto é o que é descrito como uma parte essencial da experiência. As línguas vêm para ou através de Deus. A pessoa não faz com que isso aconteça propositalmente”.
Às vezes me pergunto se o fenômeno é comparável à meditação ou à oração contemplativa, e se a corrente de palavras poderia ser comparada a um mantra ou palavra de oração. Mas Newberg, que comparou as pesquisas cerebrais de meditadores e carismáticos, diz que há diferenças. “Muitas práticas de meditação e práticas de oração, porque requerem atenção concentrada, ativam os lobos frontais”, explica ele. Em contraste, quando “uma pessoa tem uma experiência de rendição, como se estivesse sobrecarregada pela experiência, observamos diminuições na atividade do lobo frontal - como no caso das pessoas que falam em línguas”.
"Você não vai fazer isso pela casa, vai?" Uma das minhas colegas de casa pergunta quando digo a ela no café da manhã do dia seguinte que adquiri o dom de línguas. Integrar as línguas em minha vida de oração é, na verdade, um grande desafio: oro exclusivamente em línguas daqui em diante? Posso interceder em línguas? Devo tentar na missa? Por isso, decidi aceitar a sugestão de São Paulo em 1 Coríntios 14,23, que é crítico de pessoas que oram em línguas em reuniões comunitárias. "Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos?", observa ela astutamente.
Candida Moss, professora de teologia da Universidade de Birmingham e especialista em história da Igreja primitiva, Edward Cadbury, explica que essa passagem em Coríntios, escrita por volta de 53-54 d.C., é a nossa primeira fonte sobre o dom de línguas. “Está claro que as pessoas estavam falando em línguas, e isso era realmente perturbador para os momentos de oração - que eram mais parecidos com reuniões ad hoc”, diz ela. "Foi disruptivo, chamativo e muito difícil de regular."
Enquanto as práticas extáticas são encontradas em muitas religiões importantes, o dom de línguas não era uma tradição que os cristãos primitivos copiavam. “Acho que as pessoas que falavam em línguas se percebiam a si mesmas como canais do poder puro dos dons do Espírito”, explica Moss. "E porque é tão chamativo e disruptivo, foi claramente muito respeitado na comunidade coríntia."
Essa “ostentação” foi o caminho da sua queda. “No momento em que Irineu escreve [no segundo século] havia um grupo específico de cristãos cismáticos - os montanistas - que eram grandes crentes e praticantes em declarações proféticas, falando em línguas e cultivando visões”, diz Moss. “Apesar do nome (que deriva de um homem chamado Montanus), eles eram liderados principalmente por mulheres. A associação que falava em línguas com as práticas religiosas extáticas e desreguladas dos montanistas ajudou a orquestrar um afastamento dessas práticas religiosas mais carismáticas”.
Até agora. Os carismáticos modernos aceitam o chamado de Paulo para não usar o dom em comunidade, mas argumentam que a prática ainda tem um papel na edificação da fé dos crentes. O sacerdote David Oakley, reitor do St. Mary's College, em Oscott, descreve sua própria experiência de línguas como sendo “preenchida com uma nova apreciação do que Deus fez. Eu me abandono para louvar a Deus em uma canção além das palavras”.
A maioria dos católicos é "lamentavelmente ignorante" sobre os dons ou carismas do Espírito Santo, diz o Pe. Oakley. “Temos a tendência de nos concentrar nas necessidades institucionais da Igreja: quando o padre tem muito mais a fazer em várias comunidades paroquiais, quem vai cuidar da administração e demais coisas? Os dons carismáticos nos lembram que tudo o que somos e fazemos é um presente do Senhor”.
Oakley descreve o dom de línguas como um presente de oração, que surge naturalmente do desejo de louvar e glorificar a Deus. “Quando estou no campo, especialmente olhando para as montanhas e as colinas, os lindo pôr-do-sol, o oceano e assim por diante, algo acontece em minha alma”, continua padre Oakley. “Eu me sinto elevado e tenho um momento de 'uau'. Este é um dom do Espírito: o dom da admiração e da maravilha. Um 'algo' sem palavras borbulha dentro de mim. Às vezes, posso querer expressar isso em sons. O dom de línguas me permite expressar esse louvor.
Não sou arcebispo de Canterbury: descobri que não posso orar em línguas todas as manhãs. Mas oro em línguas quando estou em necessidade, quando estou lutando em oração - se estou cansado, irritado, chateado ou simplesmente sem palavras. Também ajuda quando você sente Deus distante - quando a fé parece abstrata e seca, há algo tangível em entregar o controle a alguém que você não está completamente convencido de que estará lá para pegá-la. Torna-se um ato de fé, mesmo que esse ato seja tão simples quanto dizer a Deus: "Não me importo de parecer ridícula para você".
São Paulo afirma que, quando não podemos orar, o Espírito intercede por nós em "gemidos ininteligíveis". Minha própria “língua” provavelmente soa exatamente assim para meus colegas de casa que sofrem com eles e para qualquer outra pessoa que ouça. Mas como qualquer das minhas orações desajeitadas, tenho fé que isso soa diferente para Deus.
The Tablet / Tradução Ramón Lara
*Liz Dodd é editora da Home News no The Tablet
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