quarta-feira, 6 de março de 2019

Um cristianismo com hipermetropia

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Focando apena as coisas que lhe estão distantes, o cristianismo com hipermetropia não tem a capacidade de identificar as questões que lhe estão próximas.
Uma das características da hipermetropia cristã está na preocupação literalista exacerbada com relação ao texto bíblico.
Uma das características da hipermetropia cristã está na preocupação literalista exacerbada com relação ao texto bíblico. (Sameer Shyantan / Unsplash)
Por Fabrício Veliq*

Seguindo na linha dos problemas de visão que iniciamos na semana passada, a hipermetropia é mais um entre os amplamente conhecidos entre nós. É bem provável que também tenhamos contato com diversas pessoas que sofrem desse mal em nosso cotidiano, ouvindo sempre sobre o quão difícil é, para elas, ler algum livro sem óculos ou lentes corretivas, ou ainda olhar alguma mensagem no próprio celular.

Essa hipermetropia, que é a dificuldade de ver de perto, atinge cerca de 65 milhões de brasileiros e brasileiras, segundo dados de 2013 do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, o que por si só já revela o quanto é um problema relativamente comum em nosso país.

No texto da semana passada, falou-se a respeito de um cristianismo míope, que tem dificuldade em ver as coisas que fogem do seu arcabouço conceitual e teórico. De maneira análoga, no texto dessa semana pensa-se a respeito de um cristianismo que sofre com a hipermetropia, tendo como marca característica a falta da capacidade de identificar as questões que lhe estão próximas, por conseguir focar somente nas coisas que lhes estão distantes.

É muito comum ver pessoas que se dizem cristãs e são preocupadas com a salvação do mundo e em estarem mais perto de Deus, mas incapazes de perceber os sofrimentos que acontecem na própria cidade, em que, muitas vezes, há fome, miséria e exploração. Vivem em louvores e danças proféticas que tentam alcançar o céu por meio de melodias e performances, e, diversas vezes, esquecem-se de que a proposta de Jesus consiste justamente em que o Reino de Deus venha ao mundo trazendo a paz, a restauração, a igualdade social e a justiça.

Outra característica de um cristianismo que sofre de hipermetropia é trazer consigo uma preocupação literalista muito grande com relação ao texto bíblico. Com isso, diversas vezes, por estarem presos às letras do texto, distorcem os ensinamentos contidos neles e não se atentam ao seu significado dentro de todo o contexto bíblico e cristão que este texto traz. No lugar de uma leitura amorosa do texto bíblico, sob o prisma de Jesus Cristo, que deve ser o único padrão para compreensão de qualquer passagem do Antigo ou Novo Testamento pelo viés cristão, preferem uma leitura que condena, exclui e que seja intolerante com aqueles e aquelas que não pensam Deus e a sociedade da mesma forma que a doutrina cristã. Com isso, ainda que o texto bíblico esteja tão perto e tão acessível, a hipermetropia impede que identifiquem ali a mensagem de amor de Deus, conforme revelada em Jesus Cristo.

Quando isso acontece, há uma tendência muito grande de se terem pessoas que se dizem cristãs, mas são desconectadas e desencarnadas do mundo por não perceberem que o Deus que tanto desejam alcançar em seus louvores não se encontra distante e em algum lugar nas alturas, mas é encontrado no rosto de cada pessoa que sofre, tem sede, fome, é desabrigada, nua, carente de socorro e presa, como o texto de Mateus 25 deixa bem claro. Juntamente com isso, há a grande probabilidade dessas pessoas serem daquelas que se apegam demais às letras do texto e esquecem-se do seu sentido profundo que visa ser uma boa nova de amor e salvação para qualquer pessoa que o leia e o escute.

Diante disso, assim como falamos a respeito de um cristianismo míope, ressaltamos a necessidade de estarmos atentos aos sinais de possíveis hipermetropias que possam afetar nosso olhar sobre o mundo, a sociedade, a política e até mesmo a própria religião que seguimos.

O exemplo de Cristo, sua aproximação dos mais pobres, sua luta em favor dos seus direitos, contra os detentores do poder religioso e político de seu tempo, sua abertura ao diferente, sua subversão com relação aos dogmas que escravizavam, mostrando que o ser humano sempre foi mais importante do que as normas, deve ser sempre o parâmetro pelo qual avaliamos se estamos sofrendo de hipermetropia ou não.

*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE) e Doctor in Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven). E-mail: fveliq@gmail.com

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