quarta-feira, 24 de abril de 2019

A arte de Frida Kahlo também é católica

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Apesar de sua negação da fé, Frida Kahlo foi profundamente influenciada pelo imaginário católico.
"Auto-retrato como Tehuana" e "As aparências enganam", obras de Frida na exposição no Museu do Brooklin. (The Jacques and Natasha Gelman Collection of 20th Century Mexican Art and the Vergel Foundation. © 2019 Banco de México Diego Rivera Frida Kahlo Museums Trust, Mexico, D.F. / Artists Rights Society (ARS), New York)
Por Angela Alaimo O'Donnell*

Se uma imagem vale mais que mil palavras, quanto vale um objeto?

Nos últimos anos, projetos como "A História do Mundo em 100 Objetos", do British Museum, testemunharam o fato de que cada artefato tem uma história para contar. A exposição sobre Frida Kahlo, atualmente no Museu do Brooklyn, “As aparências enganam”, apresenta mais de 300 dessas histórias, e o falatório resultante no interior das galerias mudas é alto. Como a própria Frida, cada um desses objetos - desde pinturas a fotografias, artigos de roupas e joias, esmaltes a tubos de batom, coletes corretivos e próteses de membros - chama a atenção do espectador, contando alguma das histórias sobre Frida que provavelmente não sabíamos: que ela reaproveitava seus frascos de remédios para carregar tequila; que manteve intacta a sua famosa sobrancelha única e seu bigode fraco para desafiar os padrões de beleza aplicados às mulheres em uma cultura patriarcal; que, embora insistisse em sua independência como mulher e artista, era obcecada pelo marido Diego Rivera;  que conseguia facilmente ser bonita vestindo tanto uma roupa tradicional das mulheres mexicanas como um terno e gravata.

Esses objetos transmitem uma clara intimidade. Eles tocam em aspectos cruciais da vida privada de Kahlo, incluindo sua deformidade física (e seus grandes esforços para disfarçá-la), sua dor crônica (resultado de um acidente de ônibus aos 18 anos que quebrou sua espinha e despedaçou sua perna direita que já sofria por causa de uma poliomielite infantil) e sua genuína sexualidade (sua devoção ao marido, sua raiva pelos constantes casos de Diego e seus próprios casos com pessoas de ambos os sexos). Andar entre esses objetos é fazer um passeio pela psiquê de Kahlo e, inevitavelmente, sentir-se um bisbilhoteiro e um voyeur.

No entanto, ao mesmo tempo, estamos cientes de que essas são confidências que a própria Kahlo não se importaria de compartilhar. Suas pinturas, a grande maioria das quais são autorretratos, estão repletas de auto revelação, desnudando a aparência ilibada para revelar a Frida "real" sob frivolidades, pulseiras e prendedores de cabelo, maquiagem habilmente aplicada que a decora, mas não a define. Como resultado, o espectador experimenta uma espécie de visão binocular de Kahlo - duas imagens distintas, a do seu eu privado e a do eu cuidadosamente preparado para ser mostrado ao mundo, que gradualmente se misturam e se fundem em uma só.

Para os fãs de Frida Kahlo, há uma aura sagrada sobre esse conjunto de objetos, muitos dos quais foram emprestados de sua casa, a famosa Casa Azul em Coyacán, Cidade do México, local de peregrinação como os lugares onde nasceu, morreu e permanece agora no descanso. Estas são relíquias pertencentes a santa Frida, canonizada por milhões de adoradores devotos, um culto mundial que conferiu a ela o status não oficial de padroeira das mulheres artistas. Uma santa improvável.

Nascida de um pai alemão religioso e de uma mãe mexicana católica devota, Frida foi criada como católica, mas depois rejeitou sua religião. A fotografia de sua primeira Comunhão tirada pelo pai, Guillermo Kahlo (um fotógrafo profissional cujo notável trabalho é apresentado na exposição), fala muito: Frida parece devota em seu vestido branco e véu, mas na parte de trás da foto ela mais tarde rabiscou uma palavra que não precisa de tradução, "Idiota!"

Apesar da rejeição de sua religião de infância, seu trabalho é o produto de uma imaginação profundamente católica. Os elementos católicos da arte e da visão de mundo de Frida são evidentes em muitos aspectos, mas a principal delas é sua reverência pelo corpo, especialmente o corpo partido (como o dela era) e sua santidade apesar da imperfeição. Em suas pinturas e desenhos, ela se pinta com franqueza, autoconhecimento e ternura, qualidades que são totalmente evidentes em “Las Apariencias Engañan”, obra que serve de inspiração para a exposição do Brooklyn. Neste desenho revelador, seu vestido, uma saia volumosa projetada para esconder seu corpo em ruínas e os aparelhos corretivos - é transparente, permitindo que o espectador a veja em toda a sua vulnerabilidade. Sua perna ferida carrega uma corrente de sangue escorrendo de sua pélvis, enquanto sua perna saudável é tatuada com borboletas azuis; sua espinha rachada é representada com um ferrolho segurando-a enquanto ela usa um dos coletes projetados para manter as costas retas.

Há um elemento monstruoso aqui, como se Frida fosse uma invenção semelhante à famosa criação de Victor Frankenstein, uma amálgama desagradável de carne e tecnologia. No entanto, este é um eu com uma alma sensível, bem como uma mulher cuja sexualidade não pode ser comprometida pelo equipamento decididamente não-erótico que a faz e mantém intacta. Esse é o eu inviolado que Kahlo pinta, e também é o ecce homo - ou ecce femina - a Mulher das Dores, que deve suportar a crucificação do ser humano.

A inspiração de Kahlo para sua arte veio de uma variedade de fontes, uma das quais era a prática católica da arte do ex-voto, oferendas votivas para os santos ou para Deus. Essas pequenas pinturas descrevem casos de desgraça humana - acidentes, doença súbita, morte por doença, roubo, assalto e assassinato - supervisionados pela providência divina. Frida e seu marido possuíam mais de 400 desses ex-votos, que se alinham nas paredes da Casa Azul. Em grande parte, provenientes do trabalho de artistas folk mexicanos, cada um constitui uma espécie de oração. As figuras são frequentemente descritas apelando à intervenção divina para salvá-las da morte e do sofrimento. Santos, anjos, Cristo e Deus Pai aparecem no céu, criando a imagem de um mundo no qual o divino está em comunicação e ativamente presente nos assuntos humanos.

As pinturas são muito gráficas e muitas vezes horripilantes em sua representação de agonia e calamidade, com corpos entulhados, perfurados, esmagados e de várias formas quebrados, junto com grandes quantidades de sangue. Claramente, Frida se identificou com os aflitos, dadas as suas próprias circunstâncias físicas, e neles pode-se ver traços de sua própria arte. Foi notado que um dos ex-votos que possuía, retratando uma mulher sendo esfaqueada em sua cama, é uma fonte de inspiração para a representação gráfica de Kahlo de uma mulher assassinada, “Unos cuantos piquetitos”, bem como sua representação, o próprio corpo sangrando, resultado de um aborto espontâneo, no “Hospital Henry Ford”. As pinturas de Kahlo diferem dos ex-votos pela ausência da presença divina, atestando talvez seu ateísmo, mas também seu desejo de acreditar em um mundo em que o sofrimento pode ser redentor.

O sofrimento é uma presença constante nos mundos de Kahlo, tanto o físico que sofreu quanto o artístico que criou, bem como o que os une. Muitos objetos na exposição falam desse sofrimento, mas também atestam as maneiras pelas quais a arte de Kahlo redimiu sua dor. Um dos artefatos mais pungentes da exposição é a prótese que usava depois que sua perna teve que ser amputada - uma peça prática de maquinário médico da coxa até a canela e da canela aos pés, uma bota de salto vermelha lindamente decorada. Os coletes ou cintas corretivas de Kahlo também estão à mostra, tanto os feitos de couro como os moldados em gesso. (Num gesto carinhoso, Kahlo pintou os últimos, tratando-os como telas e transformando os símbolos da fealdade em sua vida em objetos de beleza).

Após o acidente que a aleijou, passou meses em confinamento olhando-se com força em um espelho posicionado sobre a cama, pintando autorretratos após autorretratos. Durante esse período escreveu: “Eu não estou doente, estou quebrada. Mas estou feliz por estar viva enquanto puder pintar”. A confissão de Kahlo é um lembrete de outros artistas a quem a doença serviu como um catalisador para a descoberta e a prática de sua vocação, e que trabalharam em seu ofício em face das limitações impostas - entre elas, Andy Warhol, Flannery O'Connor e Walker Percy. Esses artistas, todos católicos, também se voltaram para a arte como meio de criar beleza diante da aflição, de contar a verdade sobre o sofrimento que apenas os sofredores conhecem e de redimi-lo, seguindo seu chamado com fervor religioso. Eles procuraram e encontraram santidade em sua arte.

Esses objetos eloquentes na exposição servem para lembrar ao espectador que, apesar de sua rejeição da fé, a criança no vestido da Comunhão representa um aspecto duradouro da identidade de Frida Kahlo. Sua formação católica é evidente em seus autorretratos icônicos (alguns dos quais se assemelham a ícones bizantinos), incluindo aqueles em que ela usa o tradicional cocar mexicano Resplandor, uma peça feita de véus engomados que envolve seu rosto como um halo; em suas muitas alusões visuais aos eventos centrais da história cristã e do folclore católico, incluindo os instrumentos da paixão de Cristo e os sofrimentos dos santos; e em sua insistência na beleza e santidade do corpo. De fato, se a exposição do Brooklyn fosse renomeada como “Uma História de Frida em 300 Objetos” (como poderia ser facilmente), os espectadores descobririam que muitos desses artefatos falam de um aspecto de Kahlo do qual ela não era consciente, a duração do legado de sua imaginação católica.

America Magazine - Tradução: Ramón Lara

*Angela Alaimo O'Donnell leciona literatura inglesa na Fordham University e é diretora associada do Centro Curran de Estudos Católicos Americanos.

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