quarta-feira, 8 de maio de 2019

A solidão do livreiro


Por detrás da escrivaninha e diante do computador, a mente do livreiro tentava se adaptar ao universo da internet e insistia na tarefa de cadastrar os livros num site de vendas.


A fumaça lhe transportou para outros tempos, quando, ainda jovem, abriu o primeiro sebo na Rua Sergipe – era a quinta vez que tentava o negócio de vender livros usados.
A fumaça lhe transportou para outros tempos, quando, ainda jovem, abriu o primeiro sebo na Rua Sergipe – era a quinta vez que tentava o negócio de vender livros usados. (Pixabay)
Por Pablo Pires Fernandes*
O velho se recusava a abandonar o hábito de fumar no sebo, o que acrescentou aos milhares de livros um leve aroma do tabaco. A atmosfera era insalubre, pois o pó e os ácaros abundavam no recinto como as pilhas de volumes encadernados – uns encardidos, outros encapados, muitas enciclopédias. Por detrás da escrivaninha e diante do computador, a mente do livreiro tentava se adaptar ao universo da internet e insistia na tarefa de cadastrar os livros num site de vendas. Praguejava e fumava.
Diante da pilha de trabalho por fazer, recostou na cadeira e acendeu outro Hollywood. A fumaça lhe transportou para outros tempos, quando, ainda jovem, abriu o primeiro sebo na Rua Sergipe – era a quinta vez que tentava o negócio de vender livros usados. Agora que pouca gente entrava em seu estabelecimento, sentia falta da curiosidade dos jovens clientes, tímidos, carregando preciosos volumes assinados por seus avós e os trocavam por gibis baratos.
Não era a oportunidade de fazer um bom negócio, importava-lhe o brilho nos olhos daqueles adolescentes cheios de espinha que gostavam de ler. Sempre buscava incentivá-los, indicando livros conforme deduzia o interesse deles a partir das seções e estantes diante das quais se detinham.
Sabia ser um bom livreiro desde aquela época (os jovens retornavam). No entanto, entre as aspirais de fumaça, o saudosismo lhe invadia. Remoeu seus sentimentos até detectar precisamente a origem do incômodo: o diálogo e a vivacidade da troca presente, o olho no olho.
Agora, passava horas preenchendo cadastros no computador e se lembrava dos jovens, mas também dos amigos frequentadores do antigo sebo, das discussões sobre as crônicas de Paulo Mendes Campos, o humor de Leminski ou a dignidade do velho marinheiro descrito por Hemingway. Era tudo mais palpável, refletia quando, ao mesmo tempo e não por acaso, o gato miou e a campainha soou.
A moça procurava obras específicas de Foucault e Lacan há muito fora de catálogo. Embora soubesse não constar na coleção, fingiu buscá-los pela simples possibilidade de diálogo. A conversa foi profícua e, no momento em que divagavam sobre a mentira, ela pediu licença para lhe mostrar uma “coisa incrível” no computador.
Ana – era o nome dela – mostrou ao velho livreiro o Aulete Analógico. Claro que ele conhecia o dicionário português, já tinha vendido dezenas e, inclusive, consultava a versão digital de vez em quando. Mas aquele recurso, exibido de forma gráfica e repleto de ligações lhe abriram um universo semântico ímpar.
Ao compreender a lógica associativa pelo site, ele pediu para experimentar e digitou a palavra “astúcia”. Analogicamente, a tela exibiu: Habilidade, falsidade, obliquidade de pensamento, irracionalidade. Lançou outra, “engano”: imaginação, incerteza, erro, insucesso, astúcia e, novamente, falsidade. Pesquisou por “falácia” e o resultado foi: palestra, grito, irracionalidade, erro, fraude, de novo falsidade e, achou curioso constar a palavra notícia.
Ao perceber a fascinação do senhor, Ana sorriu e disse: “Você entendeu, é um vício gostoso”. Despediram-se e, desde aquela tarde, o velho livreiro busca encontrar a verdade.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais 'O Tempo' e 'Estado de Minas', onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do 'Dom Total'.

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