"Quando os milicos levantaram a porta de ferro, foi um corre-corre", disse Leão.

Contou que, numa certa manhã de dezembro de 1968, corria pelas ruas do centro de Belo Horizonte fugindo da polícia. (Agência Estado)
Por Pablo Pires Fernandes*
“Depois que conheci Bárbara”, disse com calma e gravidade enquanto fazia movimentos circulares com o copo de cachaça, “nunca mais fui o mesmo”. Rodrigo e eu, calados e atentos, aguardávamos as palavras de Leão diante do brilho de seu único olho. Sentados no Lua Cheia, recanto etílico de poetas no Edifício Maletta, o poeta narrou a seguinte história.
Contou que, numa certa manhã de dezembro de 1968, corria pelas ruas do centro de Belo Horizonte fugindo da polícia. Jogava bolas de gude no asfalto quando a cavalaria se aproximava, provocando tombos cinematográficos aos animais. No momento de retirada – as tropas de choque e os cassetetes chegaram barbarizando –, escondeu-se em um boteco da Rua Goiás. Sob as portas cerradas, cercado de jovens atônitos, viu Bárbara pela primeira vez.
A mulher corpulenta se equilibrava sobre um tamborete no final do balcão. Seu sorriso contrastava com a tensão do ambiente. Aproximou-se dela e mencionou qualquer coisa sobre a prisão de uns amigos. Ela deu uma gargalhada e lhe pediu para pagar um torresmo e uma cachaça.
“Quando os milicos levantaram a porta de ferro, foi um corre-corre”, disse Leão, lembrando-se do ocorrido 30 anos depois e mencionando detalhes – a mancha de gordura no jaleco branco e o boné cinzento de Godofredo atrás do balcão, o quadro com dragões na parede e o pé de coelho pendurado na entrada do banheiro.
Todo mundo saiu em disparada fugindo dos cassetetes. “Só ficamos eu e Bárbara no fundo do bar”, Leão nos contou, enquanto movimentava outra dose de pinga com gestos circulares. Bebeu a dose de um só gole, sacudiu a cabeça e, com o dedo em riste, falou solenemente: “Saímos de lá, a Bárbara e eu e tive que pagar um prato de comida pra ela no boteco aqui em baixo. Acho que a fome dela era insaciável. Foi quando apareceu o Murilo”.
“Rubião?”, perguntamos em uníssono Rodrigo e eu. Ele assentiu com a cabeça, coçou o olho cego: “Ele se apaixonou por Bárbara de maneira incomensurável, o que é surpreendente”, falou, deixando certa ironia ambígua no ar. “Encontravam-se diariamente, ele lhe pagava pratos e mais pratos ali na Cantina do Lucas. Mas ele, nessa época estava mais cego do que eu. Era capaz de fazer qualquer loucura por ela.”
Pedimos três doses de cachaça. Bebemos em silêncio.
Rodrigo pensava no conto rubiano e nos desejos de Bárbara e eu imaginava a ironia no sorriso de Seu Olímpio ao servir o filé à parmegiana à mulher diante da discrição do escritor. Leão afastou nossos devaneios com uma gargalhada que ecoou pelas galerias.
“É mentira”, confessou. Disse que a parte do corre-corre era verdade, mas que, embora compartilhasse a mesa de Rubião, Bárbara era pura ficção. “É invenção do Murilo e, a partir de hoje, minha também.” E riu da nossa cara, de nossa inocente surpresa.
Saímos andando pela Rua da Bahia com um sentimento de indignação, mas não demorou para constatarmos que a ficção, na maioria das vezes, supera a realidade. Até hoje, somos gratos à mentira do poeta.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais 'O Tempo' e 'Estado de Minas', onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do 'Dom Total'.
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