quarta-feira, 29 de maio de 2019

O dilema de Renée Zellweger


Os resultados obtidos pela loira em 'Dilema' resultam bem decepcionantes.


A série é da Netflix, mas a sensação térmica é de uma novela do Walcyr Carrasco.
A série é da Netflix, mas a sensação térmica é de uma novela do Walcyr Carrasco. (Divulgação/Netflix)
Por Alexis Parrot*
Iria chegar o dia em que até Bridget Jones perderia a inocência. Seguindo os passos de outras estrelas que também migraram da telona para a televisão, dessa vez é Renée Zellweger que percorre a trilha já experimentada por Julia Roberts e Nicole Kidman. Porém, ao contrário das colegas de trabalho citadas, os resultados obtidos pela loira em Dilema resultam bem decepcionantes.
A série é da Netflix, mas a sensação térmica é de uma novela do Walcyr Carrasco, com tudo de exagero e inverossimilhança que estamos acostumados a receber do autor.
Clichês aos borbotões são a matéria-prima do programa: segredos, mentiras, traições, vinganças, o passado que sempre volta para atormentar os incautos, psicologia barata de pulp fiction, assassinatos, drogas e até um psicopata que surge do nada, completamente gratuito e dispensável, vão se sucedendo como as alas de uma escola de samba amadora e de evolução sofrível desfilando na avenida.    
O marketing do poderoso serviço de streaming explica que cada temporada da série trará uma nova história, com uma decisão moral a ser tomada que pode mudar para sempre a vida dos personagens. Até aí, novidade nenhuma – se pararmos para pensar, uma grande porcentagem da dramaturgia do mundo não se apoia na mesma premissa?
De Macbeth a Glengarry Glen Ross; de Pecado capital a Breaking bad; do segundo Poderoso chefão a Roque Santeiro; de Eles não usam black-tie a Proposta indecente.
Este último é inspiração assumida e citada pelo programa. Trata-se do filme clássico em que um milionário vivido por Robert Redford combina com Woody Harrelson uma noite de sexo com sua esposa (Demi Moore) pelo precinho módico de US$ 1 milhão. Infelizmente, o que era farsa repetiu-se agora como tragédia – porque de uma só tacada conseguiram matar todo o charme do filme original e até o que ele trazia de interessante como discussão ética.
Os excessos e reviravoltas mal orquestradas da trama transformam o que poderia ser uma retomada contemporânea da narrativa ancestral do pacto com o diabo em naufrágio em águas infestadas de tubarões. Ou seja: no final, não sobra nada. De tão primária, até mesmo a grande revelação que justifica as ações da vilã é de fácil adivinhação logo no início da história.
Já de cara, a tal decisão moral anunciada como o xis da questão, da atração acaba sendo mero detalhe. Assistindo à evolução da trama, descobre-se que a tese defendida ali é outra e diz respeito a confiar ou não nos outros – o que, convenhamos, é de um simplismo épico; digno de um episódio dos Teletubbies, mas nunca de uma série dramática adulta.
Estruturalmente, o início de cada episódio com uma cena deslocada no tempo, mostrando algo que ainda vai acontecer, copia mal outra série, Damages. Este drama jurídico, que durou cinco temporadas, apresentava Glenn Close como tutora e antagonista da advogada em início de carreira interpretada por Rose Byrne. Surge aí outra semelhança com Dilema, que não deve ser mera coincidência, a relação entre a profissional de sucesso com uma agenda secreta e sua jovem e ingênua protégée
Além disso, irrita e soa forçado o excesso de zelo ideológico da série. Afinal, item por item, este Dilema cumpre direitinho a cartilha daquilo que já se convencionou como norma generalizada de como deve ser a TV de nosso tempo, inclusiva e engajada.
A começar pelas protagonistas femininas fortes, passando por um elenco multiétnico (brancos, negros, latinos e um indiano marcam presença) e personagens gays, tudo rescende à obrigatoriedade do politicamente correto. A impressão é de que o casting foi feito visando diversidade, deixando a capacidade de atuar em segundo plano na hora de contratar atores e atrizes.
A trama rocambolesca e o texto infantil ficam piores ainda quando somados à completa falta de talento da grande maioria do time que encarna os personagens. Acaba sendo impossível torcer para os mocinhos da história ou estabelecer qualquer identificação com quem quer que seja. O saldo final é um novelão burocrático e sem alma.
Até mesmo Zellweger surge apagada, quase uma sombra, interpretando no piloto automático. Os olhinhos continuam semicerrados (uma de sua marcas registradas); mas nos lábios inchados e semiparalisados, quanta diferença... Ao tentar apagar as marcas do tempo, a atriz exagerou e nem consegue mais se parecer com si mesma. Virou outra, uma desconhecida, como alguém que esqueceu como atuar.  
Dilema é consequência direta da produção desenfreada de conteúdos para as diferentes plataformas de TV (aberta, cabo e streaming). A aposta na quantidade inflacionada de séries e programas na tentativa de conquistar e manter telespectadores é sinal dos tempos e aponta o futuro próximo que a indústria televisiva desenha para si.
A estratégia parece ser a seguinte: quem tiver mais lançamentos e o maior catálogo, a princípio, conseguirá reter mais fregueses – que decidiriam pelo canal X ou Y guiados pelo custo-benefício da assinatura mensal.
Seguindo a mesma lógica comercial, é lícito imaginar que um nome de peso como Renée Zellweger atrairá atenção, bem como um produto que apresente o espírito da diversidade em seu DNA. Se a série não é lá essas coisas, isso acaba sendo um problema menor dentro deste cenário de feira-livre e banca de saldos.
Enquanto as decisões de programação forem guiadas por este mantra, mais e mais aberrações como Dilema continuarão a surgir. O outro lado da moeda pode ser vislumbrado com produções sérias e relevantes, como Chernobyl, da HBO – uma pequena joia que reacende a esperança de dias melhores para a televisão.
(Dilema – primeira temporada disponível no Netflix.)
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.

Nenhum comentário:

Postar um comentário