segunda-feira, 20 de maio de 2019

Ter uma fé de criança, mas não infantil

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Apesar de toda efervescência religiosa, ainda há muita fé infantil.
A fé da criança é a da entrega, a fé infantil é a da dependência.
A fé da criança é a da entrega, a fé infantil é a da dependência. (David Beale/ Unsplash)
Por Felipe Magalhães Francisco*

Pode ser, caro leitor e leitora, que você, num primeiro momento, ao ler o título deste artigo, tenha levantado a possibilidade de alguma incoerência. Antecipo-me, tão logo, a reclamar uma diferenciação entre o ser criança e o ser infantil. Aqui, proponho a compreensão da infantilidade como um estado de dependência. Uma criança, dentro de seus próprios limites, pode alcançar certos níveis de independência, na medida em que vai se desenvolvendo. Alguém infantilizado abriu mão de ser independente – ou não teve essa chance, sequer de escolher. No que diz respeito à fé, a fé da criança abre espaço à pergunta, à interrogação... já uma fé infantil, aceita sem mais o que vem de outro, e compreende a realidade – e a religião – totalmente esvaziada de sua complexidade, resumindo-a num dualismo frágil.

Como um dos mestres da suspeita, Freud interpelou de forma bastante perspicaz e forte a religião – de modo especial o Cristianismo – e, com isso, a teologia. Considerou a religião como a infância da humanidade, pois homens e mulheres infantis dependiam de um Deus, não por acaso chamado de Pai, para lhes dizer como agir e lhes impor restrições de conduta. Críticas – justas – à crítica feita por Freud à parte, o que ele levanta, de fato, interpela-nos. A fé num Deus precisa, mesmo, pautar-se em ter alguém que diga ao ser humano o que fazer e como se comportar, para que alcance a vida eterna? Se sim, destruímos toda uma compreensão de uma salvação que nos é ofertada por pura gratuidade do amor de Deus.

A religião, apesar das expectativas e prognósticos dos mestres da suspeita, continua mostrando sua força. Talvez Freud tenha exagerado em julgar toda a religião como a infantilidade da humanidade, mas é certo que há pessoas religiosas completamente infantis. Dependem não apenas da imagem de Deus, mais das vezes extremamente limitadas e problemáticas, que carregam, mas, inclusive, de lideranças bastante questionáveis, que as fazem permanecer numa compreensão infantilizada da fé e das coisas que compõem a crença. A fé não é inimiga da razão. A fé busca a inteligência, dizia Santo Anselmo, pai do pensamento escolástico.  Uma fé que não abre espaço para perguntas não pode ser cristã. Afinal, a fé não me dá todas as respostas – se é que me dá alguma –, mas me dá firmeza para que eu siga em confiança, mesmo em meio às incertezas.

A fé não está nunca pronta: ela vai se fazendo, na medida em que nos permitimos estreitar nossa relação com Deus, que vai se pautando não mais na necessidade de um legislador e de um castrador que nos puna ou nos recompense, mas numa relação que tem a gratuidade do amor como parâmetro. A fé precisa entrar numa dinâmica de amadurecimento, o que pressupõe abertura espiritual para a transformação de quem somos e, inclusive, de nossos próprios sistemas de crenças. O esforço para não cedermos à infantilização da fé precisa ser cotidiano e deve ser parte fundamental de nossa vivência religiosa e espiritual.

Com Jesus, o autor e o realizador da fé cristã (Hb 12,2), aprendemos que a fé dos que aderem ao Reino de Deus deve ser como a das crianças. Convencionou-se a acreditar que Jesus diz ser das crianças o Reino de Deus, pelo fato de elas serem puras e inocentes. Não! O Reino pertence às crianças porque elas têm uma capacidade única e admirável de se entregarem em confiança, sem estabelecer critérios. Crianças conseguem viver a gratuidade, tão própria à vivência do Reino. Aprender com as crianças a fé é aprender a viver de modo genuíno a confiança em Deus, de modo inteiro. E é também nessa esteira que devemos cuidar para não causar escândalo a elas, nem aos pequenos da comunidade: não ser empecilho para a fé, mas aprender delas a como viver com fé.

Vivemos um contexto de efervescência religiosa no Brasil muito arraigado no infantilismo. Nas redes pululam uma religiosidade enfraquecida e que não se sustenta. As fileiras das igrejas e templos estão cheias de pessoas que buscam respostas por seus anseios e angústias, mas que só recebem respostas vazias de sentido e alienantes, que as fazem ficar refém de discursos anestesiantes que as fidelizam. Assumem a liderança e o discurso, nas muitas ambiências que hoje são possíveis, muitas pessoas que, iludidas na própria experiência, acabam por se tornar canal de ilusão e alienação de outras tantas, acreditando que estão servindo a Deus e ignorando que servem a si mesmas. Há, ainda, aqueles e aquelas que se apropriam da ingenuidade das massas, para sugar-lhes tudo em nome de uma fé adoecida e absolutamente fragilizada de sentido.

Benditas sejam as exceções! Que possamos trilhar caminhos nos quais contribuamos para o amadurecimento da fé uns dos outros, aprendendo a nutrir nossa relação com Deus e com os irmãos e irmãs de modo a encher de significado nossa vida, ao mesmo tempo em que lutamos por transformar nossa realidade, à luz da Palavra de Deus. Que a luta contra o infantilismo da fé nos faça perseverar na busca pela solidez de uma relação com Deus que se encarne na vida e nos encoraje a questionar aqueles e aquelas que se servem à instrumentalização da fé dos mais simples e pequenos. Ao contrário disso, seria melhor que amarrássemos uma pedra de moinho ao pescoço, e que nos lançássemos ao mar, orientou Jesus...

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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