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Que Pai Camões, Chico, te abençoe e guarde!

Autor de 500 músicas, 8 livros, 5 peças, 49 discos, enfim, de uma obra de altíssima qualidade e criatividade. (Bob Wolfenson/Divulgação)
Por Eleonora Santa Rosa*
Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
***
Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar
O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua
Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva
***
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
***
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente em algum canto de jardim
Sei que há léguas a nós separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
***
Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
No tempo, página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória das nossas novas gerações
Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos, erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia, que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
Vai passar
Francisco Buarque de Hollanda, escritor, dramaturgo, compositor, cantor, acaba de ser laureado com o Prêmio Camões, o maior e mais importante galardão da Língua Portuguesa. Autor de 500 músicas, 8 livros, 5 peças, 49 discos, enfim, de uma obra de altíssima qualidade e criatividade, construiu um legado extraordinário, considerado patrimônio literário e cultural da nossa Língua. Motivo de júbilo e celebração o reconhecimento merecido a um criador de primeira linha, que honra e transforma a cultura brasileira.
Que Pai Camões, Chico, te abençoe e guarde!
Evoé, Chico Buarque!
*Jornalista
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