segunda-feira, 17 de junho de 2019

A mística da falta

Quando é que Deus de fato nos preenche desse vazio que nos define?


Talvez Deus tenha por princípios de amor e de liberdade, não nos furtar de nossa própria vida e, com ela, de nossa falta.
Talvez Deus tenha por princípios de amor e de liberdade, não nos furtar de nossa própria vida e, com ela, de nossa falta. (Iswanto Arif/ Unsplash)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Bendita a sede

Por arrancar nossos olhos da pedra

Bendita a sede

Por ensinar-nos a pureza da água

Bendita a sede

Por congregar-nos em torno da fonte

(Orides Fontela) 
Somos seres da falta. Essa é a maior de nossas angústias existenciais e com a qual nós temos que lidar em toda a nossa vida. O drama do morrer, simbolicamente, remete-nos a isso. Há um vazio em nós, que buscamos, por muitos caminhos e de muitos modos, buscar preencher, mas que não encontramos sucesso. O desejo se move pelo desejo – parece tolo dizer – e quando alcança uma satisfação, vem o tédio do possuir, do conquistar, do alcançar... E passamos a desejar outras coisas. A falta nos move.
Este poema de Orides Fontela, aqui posto como epígrafe, tem me acompanhado desde o início de minha vida acadêmica, que coincide com uma etapa de amadurecimento pessoal muito importante. Recordo-me da aula inaugural de Introdução à Filosofia, quando nos foi apresentado este poema que, pessoalmente, revela-me uma mística, a mística da falta. Só a poesia seria capaz de bendizer a sede, o vazio em nós, a falta.
Não há saída: é preciso carregar esta falta – é mais maduro quando temos consciência dela! – como o lugar de nossa potencialidade, de nossa possibilidade de ser mais, de nos descobrirmos e, com isso, ir nos ressignificando. Talvez seja por isso que o sábio Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, tenha descoberto que a felicidade se dá em horinhas de descuido. É porque somos faltosos que temos a possibilidade de viver essas horinhas de descuido, muitas vezes como própria surpresa para o nosso desejo.
Muitas visões religiosas e espirituais vão dizer que só Deus pode nos preencher. Quem, aqui, não se lembraria de Agostinho, em suas Confissões, por exemplo? A pergunta que me faço, e que agora aqui compartilho, é a respeito do quando é que Deus de fato nos preenche desse vazio que nos define. Vem-me à lembrança o episódio do povo no deserto que, após ter acabado de ser libertado, reclama da sede!
Creio, também eu, que só Deus poderia nos preencher dessa falta; que só ele saciaria nossa sede. Mas, será que se o fizesse, ainda seríamos nós? Ainda haveria possibilidade de dar significados à nossa vida e à nossa história, que está ainda em construção? Talvez esse Deus tenha por princípios de amor e de liberdade, não nos furtar de nossa própria vida e, com ela, de nossa falta: penso que, mesmo tendo já em nossa história respondido a esse Deus, com um sim existencial, continuaremos a viver movidos pela falta. Não seria, também ela, a possibilidade, inclusive de nos aportarmos em Deus?
 Pode ser, sim, pode ser!, que a mística da falta seja, justamente, o reafirmar da esperança. Mais que isso, que ela nos revela que Deus é a nossa própria esperança, porque só nele a completude. Mas completude adiada, como promessa, para que a vida possa ser vivida com desejo. Bendita a falta!
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a editoria de religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.

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