sábado, 15 de junho de 2019

Confiança quebrada em um sistema clerical quebrado

Os escândalos sexuais envolvendo o clero constituem apenas uma parte de um problema maior que tem suas origens no clericalismo, como aponta o papa Francisco.



E estado atual do sacerdócio e do episcopado parece estar em frangalhos.
E estado atual do sacerdócio e do episcopado parece estar em frangalhos. (Reprodução)
Por Robert Mickens*

"Se você quer ser padre, minta!" Isso era para ser uma piada em Mass appeal, uma comédia dramática escrita pelo dramaturgo católico americano Bill C. Davis. Encenada pela primeira vez em 1980, foi transformada em filme quatro anos depois.
Na versão para a tela, Jack Lemmon estrela no personagem do padre Tim Farley, um pastor popular de uma paróquia rica em Connecticut. Ele é um tipo de padre amigável e de bon vivant, cujas homilias são cuidadosamente planejadas para evitar desafiar ou perturbar seus generosos paroquianos.
O padre Farley dirige um Mercedes-Benz de último tipo, adora seu vinho e uísque e passa o dia na pista de corrida. Ele é "considerado um dos melhores padres" da diocese.
Um dia, é convidado a ser mentor de Mark Dolson (Željko Ivanek), um jovem diácono altamente idealista, que corre o risco de ser impedido de ser ordenado sacerdote por não ter lidado bem com algumas situações no seminário. A principal ofensa de Mark é que ele defendeu fortemente dois seminaristas expulsos por um relacionamento homossexual suspeito.
O reitor do seminário (Charles Durning) suspeita que Mark também seja gay. Então, o padre Farley, que conta mentirinhas  "inocentes" o tempo todo para "o bem de sua paróquia", aconselha Mark evitar de contar a verdade sobre sua sexualidade para que ele possa se tornar um padre, algo que o jovem deseja com todo o seu ser. "Se você pode se dar ao luxo de não ser padre", Farley o adverte – "diga a verdade. Mas se você quer ser padre, minta!"
Mendicidade na casta clerical
Nos últimos meses, e até mesmo nestes últimos dias, essas linhas me vieram várias e várias vezes. De fato, somos tentados a alterá-las e dizer: "Se você quer ser um bispo e, especialmente, um cardeal, então minta".
Os crimes sexuais perpetrados por padres e bispos, e o encobrimento criminal por membros de todas as classes do clero mostraram que não poucos homens nas Ordens Sagradas disseram mentiras. Alguns, como Theodore McCarrick, parecem ter construído uma carreira inteira baseada em não dizer a verdade, pelo menos não toda a verdade.
Especialmente naqueles países onde a "crise de abuso" ainda está se desdobrando (ou seja, na maioria dos lugares), os católicos estão perplexos e indignados. Eles se perguntam: quanto mais de sujeira vai sair e mais quantos clérigos de alto escalão serão expostos como abusadores e mentirosos.
O último soco no estômago foi uma série de revelações sobre Michael Bransfield, o ex-bispo completamente desonrado da única diocese católica no pobre estado de West Virginia.
Washington Post publicou, em 5 de junho, uma reportagem mostrando que o bispo Bransfield, que está sendo investigado por ter assediado sexualmente padres e seminaristas, doou US$ 350 mil de fundos diocesanos em presentes a cardeais de alta patente e aos homens que supostamente assediava.
McCarrick, que foi fundamental na nomeação de Bransfield como bispo em 2004, foi um dos principais beneficiários da generosidade do bispo em desgraça. O ex-cardeal dirigiu a Arquidiocese de Washington, onde Bransfield serviu de 1980 a 2004 no Santuário Nacional da Imaculada Conceição.
Outros beneficiários dos generosos presentes do dinheiro de Bransfield incluíam os cardeais Donald Wuerl (aposentado recentemente) e Timothy Dolan (Nova York), bem como o arcebispo William Lori, de Baltimore.
O bispo também deu dinheiro a três americanos com cargos poderosos em Roma – o cardeal Raymond Burke e os agora falecidos cardeais Bernard Law e Edmund Szoka.
Dois diplomatas do Vaticano também receberam doações monetárias substanciais do bispo quando serviam como núncios papais aos Estados Unidos – o saudoso arcebispo Pietro Sambi e o agora notório arcebispo Carlo Maria Viganò.
Todos os caminhos levam a Roma
Mas uma das revelações mais alarmantes no artigo do Washington Post, que se baseia em documentos legais legitimamente verificados, é que o bispo Bransfield deu dois presentes totalizando o valor de US$ 29 mil ao cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para Leigos, Família e Vida. Farrell conseguiu seu posto no Vaticano em agosto de 2016 depois de cumprir nove anos como bispo de Dallas.
Antes disso, porém, ele era padre em Washington e atuou eventualmente como um dos bispos auxiliares de McCarrick (2001-2007). Bransfield deu a Farrell quase US$ 30 mil para reformar o apartamento do cardeal no Vaticano. Alguns desses cardeais e bispos protestaram contra sua ingenuidade ou inocência em aceitar um suborno.
A maioria não disse nada. E nenhum deles neste momento, exceto o arcebispo Lori, que está supervisionando a investigação das atividades de assédio sexual de Bransfield, condenou o bispo em desgraça ou prometeu devolver os fundos.
Nenhum desses bispos ou cardeais parou para se perguntar de onde Bransfield estava recebendo todo esse dinheiro? Algum deles considerou se ele tinha segundas intenções para lhes enviar dinheiro? Ou que pode ser antiético para eles receberem esse dinheiro?
Alguém pode ser tentado pela caridade a insistir (ou pelo menos desejar fortemente) que as ações de Bransfield fossem apenas as de um bispo solitário – uma espécie de ação única que de modo algum sugere que tais tentativas de comprar favores sejam uma prática comum no sacerdócio e na hierarquia.
Mas a tentação mais forte – apoiada pelos fatos da história e a profunda desconfiança da hierarquia que o abuso sexual e os escândalos de encobrimento geraram – é identificar esse padrão de corrupção e falsidade como mais disseminado e endêmico de um sistema clericalista ruim.
Isso já aconteceu antes
E não se iluda pensando que isso é apenas "uma coisa americana". Você pode apostar que continua acontecendo em todo o mundo. Afinal, as tentativas de adquirir influência e ofício eclesiástico existem desde a fundação da comunidade cristã primitiva (cf. At 8,18-25).
As histórias de cardeais que, acredita-se, teriam "comprado" seus chapéus vermelhos são lendárias em Roma. E aqueles prelados vestidos de escarlate que usaram seu próprio dinheiro ou o dinheiro de outros para encobrir seus delitos são mais conhecidos do que a maioria das pessoas nas "províncias" pode suspeitar.
Um dos casos mais recentes a ganhar as manchetes foi o relativo à reforma da residência do cardeal Tarcisio Bertone, o secretário de Estado do Vaticano sob Bento XVI e brevemente secretário do papa Francisco.
Depois de se aposentar em 2013, o cardeal salesiano desembolsou quase US$ 400 mil para renovar dois apartamentos de cobertura no Vaticano, que ele comprou para ser seu lar de idoso. Tornou-se controverso apenas porque foi descoberto que a construtora faturou duas vezes pelo projeto e dois funcionários do Hospital Infantil Bambino Gesù pagaram a outra metade. Os dois acabaram sendo acusados de apropriação indevida de fundos.
Bertone negou pedir o dinheiro, mas em um gesto de boa vontade doou cerca de US$ 170 mil para o hospital infantil para ajudar a cobrir a perda. O que foi mais surpreendente foi que ninguém parecia se perguntar de onde o cardeal tinha tirado todo esse dinheiro. Ele vem de uma família modesta e passou a maior parte de sua vida em uma ordem religiosa, o que significa que ele fez um voto de pobreza.
Ele não estava mais vinculado a esse voto quando se tornou bispo em 1991. Mas, mesmo assim, os salários do Vaticano não são tão altos – mesmo para os cardeais. Ele obviamente tinha amigos generosos e benfeitores.
Sexo e dinheiro
Um amigo padre previu, há 15 anos ou mais, que o próximo grande escândalo ou crise na Igreja seria de natureza financeira. Mas ele não estava falando sobre coisas como suborno ou compra de favores como vimos no caso Bransfield.
E nem quis dizer peculato ou roubo da cesta das oferendas. Em vez disso, estava falando da inépcia financeira do pároco comum e de um sistema clerical que coloca o "padre" encarregado de tudo – até mesmo das cestas e da bolsa paroquial.
Negligência na supervisão, falam alguns. O padre disse que a forma como os bispos continuam a transferir tais pastores ineptos de uma paróquia para outra poderia ser facilmente documentada.
O padrão típico é que o clérigo seja designado para uma paróquia com dinheiro no banco, apenas para deixá-lo com uma grande dívida quando for transferido para outro lugar, seis ou 12 anos depois. E aí o padrão se repete.
"A única coisa que enfurece os católicos quase tanto quanto saber que os bispos protegem os padres predadores que poderiam ter acabado molestando seus próprios filhos, é saber que os bispos estão se arrastando em torno de padres que estão desperdiçando o dinheiro do povo", disse meu amigo padre.
Isso também é uma forma de desonestidade.
Mas provavelmente não é principalmente devido à malícia, embora o abuso de sexo e dinheiro possa ser uma forte tentação até para os homens de estola. Não, o problema com grande parte do comportamento escandaloso que estamos testemunhando entre os clérigos está enraizado no "clericalismo", como o papa Francisco insiste.
Graças a Deus a Igreja Católica tem tantos sacerdotes bons e honestos quanto ela. Porque, com certeza, o heroísmo é bom em um sistema clericalista muito ruim e quebrado, no qual "o pai/padre sabe o que é melhor", e espera-se que as pessoas façam o que ele diz. Isso, claro, também é mentira. E cada vez menos católicos ainda acreditam nisso.
Publicado originalmente por La Croix International
Tradução: Ramón Lara

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