Dicotomia, que coloca em oposição Igreja e mundo, ainda é pano de fundo da compreensão religiosa de cristãos fundamentalistas.
Um pé na Igreja e outro no mundo deve ser um valor. (Unsplash/ Dylan Mullins)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Perdoem-me os Raimundos pelo uso do nome, mas, refletindo sobre a vivência religiosa cristã nos últimos tempos, recordei-me desta frase que escolhi por título deste artigo. Ela fez parte da minha infância. Lembro-me bem, do uso dela em sentido crítico, quando algum amigo evangélico da mesma idade ou mesmo um adulto usava para se referir àquela pessoa que, aparentemente, não havia sido plenamente imersa na Igreja, de modo a viver ainda as coisas do mundo. Hoje, fico pensando no quanto essa visão dualista da realidade nos traz prejuízo. De um desinteresse absurdo pelo político – aqui, entendido como interesse pelo bem-comum –, passamos a um súbito envolvimento de religiosos com a política, em sentido partidário.
Esse salto de engajamento, no entanto, não se fez de modo amadurecido, ao que parece. Leram a questão político-partidária como uma oportunidade, não de cuidado pelo bem-comum, em si, mas de fortalecimento da força da religião no país, com fins de interesses religiosos, nalguns casos. Há, ainda, os que usam da máquina religiosa para ascender a cargos eletivos, em benefício próprio. Mas, fiquemos com aqueles bem-intencionados, os que acreditam que está na religião a solução dos problemas nacionais. Têm, num versículo do Salmo 33, Feliz é a nação, cujo Deus é o Senhor, a inspiração: descobriram que a agenda religiosa só teria sucesso, se passasse pelos meios políticos.
A boa intencionalidade, entretanto, não faz com que uma pretensão seja boa e positiva, efetivamente. Religiões proselitistas têm cada vez menos chances de sucesso, em nossa contemporaneidade, tão diversamente plural. Ainda que o cristianismo – católico e evangélico – seja majoritário no país, a agenda religiosa pautada nesta fé não deve ser imposta a todas as pessoas. Sistemas de crenças devem ser seguidos por crentes destas tradições religiosas. Não se nega, no entanto, que os valores religiosos humanísticos não devam ser valorizados no que diz respeito à lida com a coisa pública. Esses valores sim, tais como a dignidade da pessoa, a garantia de direitos inalienáveis à vida, etc., são valores que estão além da religião e da confessionalidade.
Sabemos bem, contudo, que não são esses valores que embasam a empresa de religiosos em se alçarem em posições de poder público. Aquela velha dicotomia, que coloca em oposição Igreja e mundo ainda é pano de fundo da compreensão religiosa de cristãos fundamentalistas. Apoiados numa leitura que não percebe as nuances do Evangelho de João, em se tratando do termo mundo, pegam tudo num único sentido: veem como um lugar tomado pelo mal, do qual não é possível tirar coisas boas e edificantes. Logo, é preciso romper com esse mundo, vivendo numa bolha. E mais: a questão proselitista aqui também aparece, já que é preciso travar uma luta espiritual para libertar todas as pessoas desse mundo. Líderes religiosos e fiéis lúcidos em suas fés, precisam atuar em sentido contrário a essas más compreensões.
Não nos alienar, pessoas de fé que somos, do mundo, é uma urgência cada vez mais atual. Raiumundos, um pé na igreja e outro no mundo deve ser um valor: não de coração dividido entre duas realidades, mas segundo a perspectiva de que a fé se efetiva é na vida. É no mundo que devemos fazer nossa missão de ser luz e de ser sal. A questão não é combater o mundo, a partir de nossa bolha, mas transformá-lo com ações de justiça, amor, solidariedade e paz. Uma fé que não penetra a vida concreta e cotidiana, em seus sabores e dissabores, é imatura e frágil: não passa de vento, efêmera. Não são tempos para uma fé assim. Ocupemos, pois, com responsabilidade, o mundo!
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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