quinta-feira, 18 de julho de 2019

Bioética: proteger e respeitar todas as formas de vida


A Bioética oferece discernimento para usar as potencialidades das tecnologias associadas ao conhecimento.


Bioética é a arte da responsabilidade por todas as vidas.
Bioética é a arte da responsabilidade por todas as vidas. (Drew Hays/ Unsplash)
Por Élio Gasda*
Vida e ética, duas realidades tão antigas, unidas sob uma mesma ciência, a Bioética. “Temos necessidade de uma ética da terra, uma ética da vida selvagem, uma ética da população, uma ética do consumo, uma ética urbana, uma ética internacional, uma ética geriátrica, e assim sucessivamente. Todos esses problemas reclamam ações baseadas em valores e fatos biológicos. Todos eles constituem a bioética, e a sobrevivência do ecossistema total é a prova do sistema de valores” (Van Potter).
A bioética nasceu na perspectiva da casa comum. O teólogo Paul Marx Fritz Jahr (1927) e o bioquímico Van Renseleer Potter estavam preocupados com a sobrevivência da vida do planeta no contexto do desenvolvimento biotecnológico. Na obra Bioética: ponte para o futuro, de Van Potter (1911-2001), é notável a preocupação com a sobrevivência, o que o leva a propor o surgimento de um novo conceito na tentativa de unir ética e ciência. Deste diálogo entre a ciência da vida (biologia: bios) com a sabedoria prática (filosofia: ethos) surgiu o neologismo bioética. A Bioética surgiu também como uma reação aos abusos em pesquisas médicas com humanos nos EUA. A denúncia levou a criação da Comissão Belmont, autora do Relatório Belmont. Lançado em 1978, apresentou três princípios éticos: respeito às pessoas, beneficência e justiça. Os mesmos deram origem aos princípios da ética clínica de Beauchamp e Childress: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.
A Bioética oferece discernimento para usar as potencialidades das tecnologias associadas ao conhecimento. É uma das áreas da ética com maior incidência na sociedade contemporânea devido aos desafios da gestão do cuidado da vida, seja ela na etapa nascente (reprodução artificial, anticoncepção, aborto, criogênese) e terminal (eutanásia e cuidados paliativos), seja em tempos de crise ambiental e de avanços acelerados da biotecnologia e biomedicina. A defesa da vida é inseparável do cuidado do ecossistema.
A bioética é um campo propício ao embate de grupos de interesses distintos como a indústria farmacêutica, laboratórios de biotecnologia, organizações ambientalistas, associações de consumidores e entidades de classe.
Qual o papel da fé cristã no debate da Bioética? Nas suas origens estavam implicados vários teólogos devido à sua longa trajetória de reflexão no âmbito da moral. O cristão não almeja protagonismo e nem pretende impor a solução final sobre determinado problema. Sua palavra tem o mesmo valor que outras. A teologia moral não oferece receitas prontas, mas reflete a partir da fé no espaço social público, secular e plural. Nesse contexto pode oferecer contribuições importantes. O cristão não se coloca na esfera moral do “pode ou não pode”. Do contrário, como diz papa Francisco, “não estaremos anunciando o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais e morais que derivam de ideologias” (EG, 39). A Igreja é sensível aos temas éticos, mas sem reivindicar nenhum espaço privilegiado. Uma coisa é manifestar reservas a respeito de algumas práticas, outra coisa é impô-las em uma sociedade que não compartilha da mesma visão.
O desenvolvimento das ciências médicas e das biotecnologias correm o risco de perder as referências que não sejam a utilidade e o lucro. “É preciso aprofundar os temas que envolvem a bioética, como a crise ambiental, a marginalização dos sujeitos vulneráveis e a cultura do descarte” (Papa Francisco, Discurso ao Comitê Nacional de Bioética, Itália, 2016). A Bioética – continua Francisco – nasceu para confrontar, mediante um esforço crítico, as razões e as condições exigidas pela dignidade da pessoa humana: interesses da indústria farmacêutica, mudança climática e suas implicações à saúde, segurança alimentar, habitação e escassez de água, migrações forçadas, prolongação da vida, retardamento do envelhecimento, cura de doenças, transformação do comportamento e das características físicas, potencialização das capacidades intelectuais, fabricação de novas espécies, efetuação de transplantes de uma espécie à outra, criação de novos alimentos e sementes, investimento em mineração em áreas de preservação, liberação do uso de agrotóxicos nocivos. O ecocídio é o principal problema a ser enfrentado.
Está em jogo a própria visão de ser humano. Como diz papa Francisco, tudo está interligado: não existe a bioética de um lado e os migrantes do outro. Que espaço é deixado ao ser humano? O contato com a realidade dos pobres exige repensar a redução da bioética à clínica, para focalizar nas questões emergentes que dizem respeito aos problemas mais elementares da justiça social. Papa Francisco indica na encíclica Laudato si que a questão não é apenas setorial, mas sociocultural e antropológica. Como ficar discutindo horas e horas sobre aborto e eutanásia, quando existe um continente africano em que metade das pessoas não tem acesso a uma água que não esteja contaminada? Ou quando a ONU identifica 820 milhões de famintos no mundo?
Bioética é a arte da responsabilidade por todas as vidas. Ela ocupa-se com a sobrevivência de toda a criação, atenta também às futuras gerações, sem esquecer o próximo concreto. O futuro está em nossas mãos. Não apenas de um grupo de especialistas. A proteção e o respeito pela vida não pode ser relativizada. Esse princípio é extensivo à toda humanidade, presente e futura, e para toda a criação.
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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