quarta-feira, 10 de julho de 2019

O beijo e a navalha

Minha mochila estava com o porteiro e caminhei o quilômetro e meio até a rodoviária no ritmo dos acordes do violão de João Gilberto.


Uma figura austera e quase impassível emitia um som confortante e familiar.
Uma figura austera e quase impassível emitia um som confortante e familiar. (Ari Versiani/AFP)
Por Pablo Pires Fernandes*
Naquela tarde, quando atendi ao telefonema de minha mãe, ela foi excepcionalmente objetiva: “Você quer ir ao show do João Gilberto?” Fez a pergunta de maneira corriqueira, como se quisesse saber se o dia na faculdade tinha sido bom ou tinha levado casaco porque a frente fria estava chegando e eu poderia me resfriar. O convite, no entanto, era extraordinário.
Naquela noite, João Gilberto se apresentaria no Palácio das Artes. Era uma apresentação fechada para convidados, patrocinado por uma grande empresa. Pouco me importava, afinal, estava diante da possibilidade de assistir, de graça, a um show do João Gilberto! Sem titubear, respondi: “Claro”.
Depois de aceitar a irrecusável oferta, dei-me conta da viagem programada para São Paulo no ônibus das 22h45 daquela mesma noite. Calculei: o show está marcado para às 20h, vai dar tempo. Não conhecia a Pauliceia e estava ansioso, mas, por João e seu violão, a gente faz quase qualquer negócio.
O combinado foi que minha tia me buscaria na porta do teatro às 22h20, levando minha mochila. Me despacharia na rodoviária, tudo certo. Por volta da meia-noite, provavelmente estaria passando por Sete Lagoas quando se iniciava a data do meu aniversário de 22 anos. Nesta hora, porém, não estava lá. Culpa do João Gilberto.
Cheguei cedo, às 19h20 peguei meu ingresso na bilheteria e soube que meus trajes – nesta época, eu ainda usava calça jeans – não estavam nos conformes e não poderia entrar. De novo, não titubeei e um táxi me trouxe de volta em menos de 20 minutos, agora com calça social e o jeans em uma pastinha de couro escolar.
Faltavam dois minutos para o show e, esbaforido e adequadamente trajado, uma amiga me disse: “Acabei de deixar o João Gilberto no hotel, ele vai demorar, o show deve começar lá pelas 21h30”. Demorei uns bons minutos – até umas 20h10 – para equacionar. Saí caminhando desenfreadamente até à rodoviária, de calça social e paletó. Consegui trocar a passagem para o ônibus da meia-noite e, na volta, combinei com a minha tia de ela deixar a mochila com o gentil porteiro do Palácio das Artes.
João Gilberto entrou no palco às 21h34. Sentou-se no banquinho com seu violão, murmurou umas pouquíssimas palavras que não consegui distinguir. E, durante mais de duas horas, aquele senhor tocou seu violão e cantou, sussurrando Vinicius e Tons de seu jeito bim-bom de existir.
Diante de mim, uma figura austera e quase impassível emitia – voz e violão – um som confortante e familiar, mas, ao mesmo tempo, causava-me completo desentendimento. Havia abraço e exílio, beijo e navalha, era como a dúvida ao despetalar um malmequer.
Saí sem saber o que queria, um tanto atordoado. Havia um grande coquetel armado no foyer, mas não quis saber. Minha mochila estava com o porteiro e caminhei o quilômetro e meio até a rodoviária no ritmo dos acordes do violão de João Gilberto. O ônibus arrancou um minuto depois da meia-noite. Era meu aniversário e eu, finalmente, ia conhecer São Paulo.

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