sexta-feira, 12 de julho de 2019

Os adversários do Sínodo Pan-Amazônico desconsideram doutrina social católica

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Esse Sínodo tem a oportunidade histórica de se diferenciar claramente das novas potências colonizadoras, ouvindo os povos amazônicos para exercer seu papel profético.
O papa Francisco fala aos grupos indígenas em Puerto Maldonado, Peru, em 19 de janeiro de 2018. Ao lado de milhares de peruanos indígenas, Francisco declarou a Amazônia o
O papa Francisco fala aos grupos indígenas em Puerto Maldonado, Peru, em 19 de janeiro de 2018. Ao lado de milhares de peruanos indígenas, Francisco declarou a Amazônia o "coração da igreja" e pediu uma defesa tripla de sua vida, terra e culturas. (NCR/AP/Alessandra Tarantino)
Por Charles Camosy
NCR Online

Muito tem sido feito nos círculos católicos sobre o documento de trabalho para o Sínodo dos Bispos, programado para os próximos meses, atualmente intitulado A Pan-Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para a ecologia integral.

Um dos críticos mais importantes da agenda estabelecida no Instrumentum laboris é o cardeal alemão Walter Brandmüller, que anunciou sem rodeios que "o documento contradiz o ensino obrigatório da Igreja em pontos decisivos e, portanto, tem de ser qualificado como herético".

Isso, como se diz em outros contextos, é uma afirmação de peso.

Pode-se esperar que o cardeal Brandmüller concentre suas críticas nas possíveis medidas excepcionais sugeridas no documento de trabalho para ordenar homens idosos, casados e indígenas em áreas remotas da Amazônia, para que os fiéis de lá possam receber os sacramentos.

Este é o ponto que se desdobrou do debate onde a maior parte do ruído se concentra. Os mais tradicionalistas destacam que a ordenação de homens casados, apesar de excepcional, seria herética em relação aos modos atuais permitidos pela Igreja – admitindo o clero casado oriundo da Igreja Anglicana e que se converteu ao catolicismo ou padres casados das Igrejas católicas orientais –, que não são.

Mas não é aqui que Brandmüller e outros em seu grupo expressaram a maior preocupação. De forma perturbadora, o primeiro alvo parece ser a doutrina social católica.

"Claramente," escreve Brandmüller em uma carta publicada na íntegra pelo site LifesSite News, "há uma intromissão aqui, por do Sínodo dos Bispos, nos assuntos puramente seculares do Estado e da sociedade brasileira. O que tem a ver a ecologia, a economia e a política com o chamado e a missão da Igreja? Mais importante: que autoridade e expertise profissional um sínodo eclesial tem para se expressem sobre tais temas?

Isso pode soar como uma preocupação razoável até que, de fato, seja colocado no contexto dos verdadeiros objetivos do Vaticano com o sínodo.

De maneira clara, este sínodo colocará a Igreja do lado dos povos indígenas da Amazônia. Em particular, colocará a Igreja do lado de uma ecologia integral que respeite a criação de Deus e sua relação com o florescimento dos povos indígenas da Amazônia.

Reconhecerá, além disso, que a Igreja não pode ser identificada apenas com o Ocidente desenvolvido e honrará o fato de que, como o papa são João Paulo II insistiu, Cristo está presente nos povos indígenas de uma maneira muito especial.

De fato, o documento de trabalho insiste que a vida na Amazônia é ameaçada pela destruição e pela exploração do meio ambiente, e pela violação sistemática dos direitos humanos. Em particular, é ameaçada pela violação dos direitos dos povos indígenas, como o direito ao território, à defesa, à demarcação de territórios e à prévia consulta e consentimento.

De acordo com as comunidades participantes do Sínodo, a ameaça à vida vem de interesses econômicos e políticos globais, especialmente empresas extrativistas, muitas vezes em conspiração ou toleradas por governos locais e nacionais, bem como por líderes indígenas tradicionais.

A Amazônia tem grandes riquezas – tanto em seu povo quanto em seus recursos – que essas forças e empresas tomaram, estão tomando e pretendem tomar no futuro. O documento de trabalho do Sínodo chama sua atenção crítica para a "visão insaciável de crescimento ilimitado, da idolatria do dinheiro, de um mundo desconectado de suas raízes e ambiente, de uma cultura da morte".

As potências econômicas e políticas desenvolvidas, é claro, não cairão sem lutar. Mas cabe à Igreja Católica permanecer fiel à nossa doutrina social, insistindo em nosso dever religioso de estar do lado dos povos indígenas neste conflito.

Estranhamente, o cardeal Brandmüller descarta este chamado sugerindo que as questões levantadas pelo documento do Sínodo envolvem questões de perícia profissional que os bispos não têm. Ele até sugere que tópicos como "ecologia, economia e política" nada têm a ver com a missão e o chamado da Igreja.

Essa sugestão, que está mais próxima da heresia do que qualquer coisa no Instrumentum laboris, é totalmente inconsistente com quase 130 anos de doutrina social católica.

De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja do Vaticano, esse corpo de ensinamentos preocupa-se com relacionamentos justos e santos na sociedade – situações e problemas relativos ao desenvolvimento, trabalho humano, economia, política, ecologia humana, salvaguardar o meio ambiente e muito mais.

É verdade que os julgamentos feitos sobre políticas públicas específicas só podem ser informados – não determinados – pelo ensino católico. A doutrina social católica insiste no direito de sindicalizar e receber um salário digno, por exemplo, mas como essas uniões são organizadas e o que conta como salário digno em um contexto social e econômico particular não é uma questão que o ensino católico possa decidir no abstrato.

Todavia, a doutrina social católica exige que as políticas econômicas e políticas sejam projetadas com uma preferência pelos povos indígenas sobre e contra seus poderosos exploradores.

Ela exige que as preferências de estilo ocidental para o crescimento ilimitado do capital, a idolatria de dinheiro e a exploração da criação de Deus sejam resistidas com uma ecologia integral que honre o plano de Deus para seres humanos vulneráveis e encarnados e seu relacionamento com o mundo ecológico mais amplo.

As especificidades de como essas metas são cumpridas, é claro, não podem ser decididas de forma abstrata. O discernimento daqueles com conhecimento além do conhecimento dos bispos deve ser ouvido com muito cuidado precisamente por esse motivo.

Mas como o Instrumentum laboris deixa claro, esse sínodo tem "a oportunidade histórica de diferenciar-se claramente dos novos poderes colonizadores ouvindo os povos amazônicos".

As vozes indígenas devem falar primeiro e a Igreja deve ouvir. A doutrina social católica não exige menos.


Publicado originalmente pelo National Catholic Reporter.

Tradução: Ramón Lara

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