quinta-feira, 11 de julho de 2019

Poética patética na nossa música

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Em muitas dessas letras carregadas de mistério não cabe a chamada licença poética, por mais generoso que seja o ouvinte e amante da boa música e da boa poesia.
Caetano Veloso escreveu e cantou:
Caetano Veloso escreveu e cantou: "Nem a sanha arranha o carro/ Nem o sarro arranha a Espanha"... O que o notável compositor baiano quis dizer com esses versos, só ele sabe. (AFP)
Por Afonso Barroso*

Já li e escrevi sobre letras de música absolutamente incompreensíveis da nossa música popular. De vez em quando me lembro delas e, para não cometer algum equívoco, confiro no Google, que é a nossa Enciclopédia Barsa e nosso Aurélio de cada dia. Lá as encontro, misteriosas, a desafiar nossos vãos conhecimentos.

Em muitas dessas letras carregadas de mistério não cabe a chamada licença poética, por mais generoso que seja o ouvinte e amante da boa música e da boa poesia. Sim, porque em geral as melodias são boas e, creio que para não serem indelicadas, convivem harmoniosamente com letras ininteligíveis.

Não há que falar em licença poética na letra dos nossos grandes Tavito e Zé Rodrix em Casa no campo, quando a letra fala do desejo de ter um filho de cuca legal e de “colher com a mão a pimenta e o sal“. Com perdão da invasão da casa, digo que no quintal não se colhe sal. Pimenta, sim, mas o sal não dá. Tem que ir à feira comprar. Licença poética ou hortigranjeira?

Caetano Veloso escreveu e cantou: "Nem a sanha arranha o carro/ Nem o sarro arranha a Espanha"... O que o notável compositor baiano quis dizer com esses versos, só ele sabe. Eu, pobre de mim, não consigo captar. Quem souber, além dele, que me faça o favor de elucidar o mistério.

“Lava roupa todo dia, que agonia/ Na quebrada da soleira, que chovia”, canta a rimar com seu próprio nome o notável Luiz Melodia em Juventude transviada. E na sequência tem “Até sonhar de madrugada/ Uma moça sem mancada/ Uma mulher não deve vacilar”. Mistério total e insondável. Que quer dizer isso? Creio que nem ele, o melodioso cantor, sabia.

"O gato que está triste e azul", cantou Roberto Carlos em versão de uma música italiana. Prefiro o negro gato, que a gente entende o que quer dizer, até porque gato preto existe, mas azul não se conhece. Só se for um gato triste, e além de triste, azul de blue, o que perfaz uma tristeza dobrada e redundante.

Agora, quem extrapola mesmo em matéria de mistério é Jorge Benjor na música W/Brasil, título que deu por certo para homenagear o W da agência, Washington Olivetto, o papa da criação publicitária, talvez em agradecimento ao cachê gordo que recebeu pela aparição em uma propaganda qualquer. Diz Benjor no seu ritmo sempre contagiante: “Alô, alô, dabliú brasil/ Jacarezinho, avião/ Tira essa escada daí/ Eu vou chamar o síndico”. Sucesso total de uma letra totalmente surreal.

E cantou Cazuza, sem pedir licença, mesmo que poética: “Que só eu que podia/ Dentro da tua orelha fria/ Dizer segredos de liquidificador”. Não conheço ninguém capaz de explicar o que é segredos de liquidificador. Simplesmente porque não tem explicação. Licença auricular?

Walter Franco compôs e cantou: “Viver é afinar o instrumento/ De dentro pra fora, de fora pra dentro”. Vou pedir a santo Afonso Maria de Ligório, meu xará e protetor, que um dia me explique o que significa isto. Tentei com o meu violão, inutilmente.

Há na música popular brasileira palavras que ninguém conhece e jamais conheceu, como o mulato inzoneiro e a merencória luz da lua de Ary Barroso. Inzoneiro, o dicionário diz que é sonso, manhoso. Será que o Brasil é um mulato sonso, manhoso? Nesse caso, parece que a licença poética permite o adjetivo. Mas, merencória é o mesmo que triste, e a lua não é nada triste. Aí a licença poética se recusa a sair de casa nessa noite.

PS – Peço aos caros leitores e amantíssimas leitoras que não levem estas considerações sobre letras da nossa música como críticas aos autores. São todos merecedores dos nossos maiores encômios. Só que às vezes exageram na licença poética a que têm direito, e alguns versos acabam não indo aonde o povo está, como poeticamente recomendou meu saudoso amigo e poeta Fernando Brant.

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