terça-feira, 23 de julho de 2019

Soter aborda as práticas de descolonialidade e emancipação

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Sociedade de Teologia e Ciência da Religião discute as atuais situações estruturais de injustiça e as novas epistemologias indígenas, afro-descendentes, ecológicas e de gênero.
32º Congresso da Soter aconteceu em Belo Horizonte.
32º Congresso da Soter aconteceu em Belo Horizonte. (Ilustração de Sérgio Ricciuto Conte/ Soter)
Por Juan José Tamayo*
Religión Digital

Acompanho desde a sua criação, com grande interesse e enriquecimento intelectual, o Congresso da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião (Soter), que é um dos espaços privilegiados para o diálogo interdisciplinar, intercultural, inter-religioso e inter-étnico na América Latina.

O evento é caracterizado pelo rigor científico na análise do fenômeno religioso e sua funcionalidade social, econômica, política e cultural, desde as ciências sociais até a teologia. Também por sua posição crítica na realidade histórica, sua sensibilidade aos fenômenos da marginalização de pessoas empobrecida, pela ênfase na crítica à exploração das classes sociais, os discriminados pelas identidades sexuais, os povos oprimidos, as culturas silenciadas (sobretudo de ascendência africana, indígenas, rurais…), as subjetividades negadas e as religiões originárias menosprezadas, bem como sua relação com os movimentos sociais e a perspectiva emancipatória.

A Soter, fundada em 1985, é uma associação civil, independente de estruturas eclesiásticas, ecumênicas, inter-religiosas e de orientação libertadora. Pertencem mais de 650 pessoas dedicadas ao estudo e pesquisa de Teologia e as Ciências da Religião, estudantes de pós-graduação e pesquisadores de ciências afins: Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, Teologia, etc., todos em um nível tanto nacional como internacional.

O seu presidente e vice-presidente, reeleitos na reunião deste ano, são César Luchetti Kuzma e Maria Clara Bingemer, professores de teologia na Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro. Como diz César Kuzma, pertence à missão da Soter a atenção para os problemas urgentes e importantes desafios da sociedade, a inclusão social de suas propostas e o tratamento de indivíduos olhando sempre para o bem comum e a construção de uma sociedade alternativa, tendo como bases de estudo as ciências da religião e da teologia, disciplinas em constante diálogo.

Os congressos Soter são agora uma das principais referências na área de Estudos da Religião e da Teologia no Brasil, com projeção para outros países da América Latina e um ponto de encontro de diferentes programas de pós-graduação nessas áreas e de câmbio de experiências entre pesquisadores mais experientes e outros em treinamento.

A celebração de 32 congressos, até agora, constitui a melhor prova da importante contribuição acadêmica que Soter traz à sociedade dentro da especificidade de seu conhecimento e sob a orientação da teoria crítica das religiões. Longe de dar a volta ou de cair numa abstração pseudo-universalista, a Soter presta atenção a problemas urgentes e tenta modestamente responder aos desafios mais importantes.

Este ano fui convidado como orador no Congresso que teve lugar de 9 a 12 de julho, na cidade brasileira de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, com a participação de mais de 500 pessoas de diferentes estados do Brasil, assim como de outros países da América Latina, Estados Unidos e Europa. Presidindo o Congresso, encontrava-se um retrato gigante de Marielle Franco, socióloga feminista, vereadora da cidade do Rio de Janeiro e ativista afro-americana, defensora dos direitos humanos, especialmente das mulheres negras, que foi assassinada em 14 de março de 2018, durante a celebração do Fórum Social Fórum Mundial e Fórum de Teologia e Libertação, realizado na cidade brasileira de Salvador de Bahia.

Essa imagem já estava marcando a orientação do Congresso: por um lado, a violência sistêmica em todos os níveis: estrutural, sexual, simbólica, religiosa, ecológica, social, política, étnico-cultural, econômica, cognitiva; por outro lado, o reconhecimento do pluriverso étnico-cultural da humanidade, resistência à violência sistêmica e práticas emancipatórias.

O tema tem sido a descolonialidade e as práticas emancipatórias. Novas perspectivas para a área das Ciências da Religião e Teologia, cujos principais objetivos foram:

- Tomar consciência das diferentes situações estruturais de injustiça, causadas pelo capitalismo, colonialismo, patriarcalismo, fundamentalismos religiosos, o antropocentrismo predatório da natureza, o racismo social e epistemológico, etc.

- Fazer uma leitura da situação atual, ressaltando a necessidade de se desenvolver um discurso descolonial dentro das ciências da religião e da teologia, que questione o colonialismo eurocêntrico hegemônico ainda muito presente nessas disciplinas;

- Prestar mais atenção às novas epistemologias ligadas aos atuais temas teológicos, novos atores sociais, novas práticas emancipatórias e novos espaços socioculturais.

- Incentivar um debate aberto baseado nas perspectivas indígena, afro-descendente, ecológica e de gênero, com ênfase nos aspectos religiosos, culturais e éticos.

- Abordar os desafios étnicos, culturais e relacionados, todos eles associados, que levantam questões fundamentais da existência humana e requerem novas categorias de interpretação e interação.

Uma dessas categorias é justamente a descolonialidade, que vem sendo estudada em diferentes áreas de pesquisa e que neste Congresso incorporamos como categoria fundamental na grande área das ciências sociais e da teologia, para oferecer novas perspectivas de estudo e ação. O discurso dsecolonial tem como base estrutural o lugar onde o conhecimento é produzido, alimentado por lutas e resistências e guiado pela utopia de Outro Mundo possível.

O congresso foi desenvolvido através de conferências, painéis, grupos de trabalho, fóruns temáticos e apresentação de publicações. Vale ressaltar a riqueza temática das conferências e comunicações. Ofereço aqui uma síntese das principais questões tratadas por especialistas em sintonia com os movimentos sociais:

- Descolonialidade: esclarecimento conceitual e questões epistemológicas; teologia da libertação e prática descolonial; epistemologias do sul e teologias do sul; conhecimento e causas indígenas; descolonização e práticas emancipatórias na Bíblia, na história do cristianismo na América Latina, na teologia; a descolonização dos novos ministérios, das pequenas comunidades como processo de emancipação e de devoção mariana na América Latina; etnia, descolonialidade e religião; conhecimento, causas da cultura negra, luta, resistência e espiritualidade; contribuição do místico à descolonialidade; ações místicas, proféticas e políticas para um pensamento descolonial

-Teologia e Bíblia: a teologia da libertação em Abya-Yala como um diálogo epistemológico horizontal; Domínio da Europa Central: da libertação à descolonialidade da teologia latino-americana; a perspectiva descolonial da Teologia Negra de James Cone; teologia no espaço público; teologia política, universalismo e colonialidade religiosa; cristologia subversiva e processos de descolonização; leituras emancipatórias da Bíblia; o princípio da realidade e o princípio-esperança como método teológico, etc.

- Teologia feminista: teologia feminista e descolonização como meio de transformação do poder patriarcal na Igreja Católica; hermenêutica teológica feminista; Jesus e a emancipação das mulheres; gênero, religião e violência; gênero, direito e espiritualidade; hermenêutica plural na interpretação de Gênesis 3; (re)conhecimento de mulheres na bíblia e capacitação de mulheres cristãs hoje; as mulheres em documentos pontifícios; a produção discursiva de neo-conservadores religiosos em torno da religião e da sexualidade no Brasil; a produção ideológica da “ideologia de gênero”; a participação de grupos cristãos em manifestações contra a “ideologia de gênero”; Avanços na aceitação de pessoas homossexuais no catolicismo contemporâneo.

- Descolonialidade, religião, religiões: religião, arte e literatura; Religiões afro-brasileiras; novos movimentos religiosos e espiritualidades seculares; novas sensibilidades religiosas; secularidade e confessionalidade; ateísmo hermenêutico; interculturalidade, religião e violência racial; religiosidade digital; pluralismo espiritual e diálogo inter-religioso; fundamentalismos; Igrejas evangélicas; misticismo e espiritualidade; religião e fundamento ético dos direitos humanos; a deificação do mercado; a mercantilização da fé e a comercialização do sagrado na “Igreja Universal do Reino de Deus”; a domesticação da cruz nas teologias evangélicas e protestantes contemporâneas; utopia e religião; Candomblé

- Religião e ecologia: possibilidades de diálogo entre ecologia e a escatologia em Moltmann; sustentabilidade e tecnociência na encíclica Laudato Si; eco-teologia; eco-espiritualidade bio-cêntrica; novo paradigma eco-cósmico e teologia em Leonardo Boff; antropologia ecológica abrangente; o inter-ser no budismo do monge Thich Nhat Hanh; o Sínodo da Amazônia como processo emancipatório; "Igrejas Verdes": proposta eclesial ecológica.

- Bioética: teologia e saúde mental; considerações teológicas em torno dos cuidados paliativos; antropologia filosófica e cuidados paliativos; bioética e espiritualidade

No congresso, Leonardo Boff recebeu o Prêmio "João Batista Libânio", em memória do professor da Faculdade de Filosofia e Teologia jesuíta de Belo Horizonte, referência da Teologia da Libertação no Brasil e no mundo e acompanhante das comunidades de base, que morreu em 2015.

Publicado originalmente por Religión Digital.

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