Acostumado a julgar nas outras atrações de que participa, dessa vez Ramsay quer competir.
A partir do momento em que o programa foi anunciado, ainda no ano passado, acumularam-se críticas vindas de todos os lados. (Divulgação Nat Geo)
Por Alexis Parrot*
Além das séries, seriados e minisséries que abarrotam exponencialmente canais de TV e serviços de streaming mundo afora, outro gênero que não cansa de se multiplicar é o de programas de gastronomia. A mais recente investida na área é Gordon Ramsay – Uncharted, produção multicontinental do braço de televisão da National Geographic.
O cozinheiro celebridade, conhecido por realities culinários como Hell's kitchen, Masterchef EUA e outros, apresenta este Uncharted como "uma aventura épica até os confins do mundo em busca de inspiração". Mera desculpa para uma competição entre o chef escocês e um jovem talento local da culinária nos países visitados por ele.
A partir do momento em que o programa foi anunciado, ainda no ano passado, acumularam-se críticas vindas de todos os lados. E não era para menos. O formato da atração parecia uma tentativa oportunista de ocupar rapidamente a lacuna deixada por Anthony Bourdain, menos de dois meses após sua morte.
Este colunista assistiu aos três primeiros episódios e a impressão não foi das melhores. Se a ideia era mesmo evocar o misto de peregrinação e investigação empreendidas por Bourdain em seus programas, resta claro que Ramsay e equipe não entenderam nada. Até para copiar é necessário primeiro saber ler.
O resultado poderá ser visto pelo público brasileiro a partir do próximo dia 14, no Nat Geo, em uma primeira temporada de seis episódios. Por estas bandas o programa foi batizado de Sabores extremos e, muito embora a comparação seja mesmo inevitável, acompanhar as viagens pirotécnicas de Ramsay só consegue evidenciar mais ainda a falta que faz um Anthony Bourdain.
Tanto no Sem reservas quanto no Parts unknown, os programas capitaneados por Bourdain durante mais de uma década, a comida era a chave com que abríamos as portas para mergulhar em diferentes culturas ao redor do globo, conhecendo algumas de suas peculiaridades e muito de suas idiossincrasias. Acompanhá-lo era sempre encantador, graças à sua curiosidade genuína, empatia e prazer de se surpreender.
Com Ramsay nada disso acontece. Ele trata o mundo como um parque de diversões temático em que tudo fica em segundo plano, exceto ele mesmo. O programa não é sobre o Peru, ou a Nova Zelândia ou o Marrocos (os destinos dos primeiros episódios), diz respeito à disposição dele de competir e se arriscar. Se no meio do caminho acabamos também aprendendo alguma coisa, é mero detalhe.
As imagens suntuosas (abusando do uso de drones para tomadas aéreas) não são o suficiente para mascarar a pobreza retórica do apresentador que se limita a exclamar "uau!" para tudo que o impressiona. Os adjetivos "surpreendente", "incrível" e "extraordinário" são declinados a todo momento e por qualquer motivo, com o claro objetivo de tudo parecer maior do que realmente é.
Há uma irritante grandiloquência no chef escocês, sempre tratando o outro com algo de superioridade, aliada a um falso deslumbre que simula equalizar a operação. O típico é tratado como exótico ou antinatural. Por acreditar que está falando apenas para pessoas como ele (os telespectadores a quem se dirige), abusa das piadas infames e acaba personificando uma visão muito distorcida do que seria entreter.
No Vale Sagrado peruano, aprendeu uma técnica de moagem com pedras, herdada da tradição milenar inca. Ao executá-la, falou que se sentia como Os Flintstones na Idade da Pedra. O chiste inadequado denota se não descaso, uma perigosa condescendência para com seus interlocutores – selvagens, em última instância, simplesmente porque diferentes dele mesmo.
Para palavras e expressões que não entende (por conseguinte exóticas, sob o seu ponto de vista) tem o hábito de repeti-las foneticamente, feito um papagaio que apenas se diverte e nada absorve.
Ao experimentar comidas típicas que desagradam, não esconde a cara feia antes mesmo de prová-las. Com tamanho preconceito explícito, mostra desconhecer uma das regras de ouro estabelecidas por Bourdain para que a comida seja fonte de felicidade: comer sempre com gusto – como diriam os italianos.
E não é apenas este conceito que Gordon Ramsay despreza ao mal copiar o legado de Anthony Bourdain. Em entrevista concedida em 2016, o chef norte-americano afirmou: "Não existe nada mais político, nada mais revelador sobre a real situação de um país, se aquele sistema funciona ou não... quem come e quem não come e o que se come; a comida que está no prato é o resultado de uma longa (e às vezes dolorosa) história."
O oposto exato disso é este Sabores extremos, uma experiência culturalmente superficial. Ao final de cada episódio, teremos visto pouco do país visitado e muito das traquinagens protagonizadas por Ramsay, como escalar montanhas, descer uma cascata de rapel, trepar em árvores, fazer mergulhos submarinos e até cometer uma ridícula corrida em câmera lenta ao desembarcar de um helicóptero.
Na Ilha Stewart, na Nova Zelândia, segundo o costume maori, saiu para caçar e abateu uma cabra montanhesa selvagem. Pior do que a polêmica gerada pelo episódio nas redes sociais, foi o constrangimento de assistir ao chef se vangloriando de matar o animal com só um tiro em terreno tão acidentado.
Esta acaba sendo a principal diferença entre os dois cozinheiros e a maneira como um e outro sempre encarou a televisão: enquanto Anthony Bourdain colocava-se a serviço de seus programas, Gordon Ramsay quer ser o programa.
Acostumado a julgar nas outras atrações de que participa, dessa vez Ramsay quer competir. Um programa com pretensões antropológicas como este deveria evitar disputas para engajar-se na tentativa do encontro e do reconhecer-se no outro, mesmo com todas as diferenças de parte a parte expostas sobre a mesa.
Ao escolher o caminho da competição e do desafio, Sabores extremos queima a corrida já na largada – fingindo que escuta para poder simplesmente falar sem parar.
- Sabores extremos com Gordon Ramsay: estreia quarta, 14 de agosto, 21h30, no Nat Geo.
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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