segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Pessoas de fé, envergonhai-vos!


Ou a fé nos ajuda a nos tornarmos pessoas melhores, ou essa fé deve ser colocada sob suspeita.


A fé deve provocar aquela santa indignação, que nos coloque num movimento de transformação.
A fé deve provocar aquela santa indignação, que nos coloque num movimento de transformação. (Samuel Martins/ Unsplash)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Para muitas pessoas, a fé é motivo de orgulho. Lembro-me da infância, quando por vezes nos víamos espantados diante de alguém que não havia sido batizado. Como aquilo era possível? A um tempo atrás, a pertença religiosa, mesmo que apenas confessada oralmente, sem qualquer vínculo de pertença, era questão muito valorizada. Atualmente, mesmo que ainda haja preconceitos contra agnósticos, ateus e pessoas sem religião, estamos aprendendo a lidar melhor com a pluralidade e com as escolhas pessoais. Mas, para as pessoas engajadamente religiosas, de fé, essa pertença continua sendo uma interpelação a uma transformação da vida e do mundo, num contexto ético?
A fé sem obras é morta, ensina-nos a Carta de Tiago. Obras, nesse contexto, não devem ser compreendidas como um fazer coisas, de modo tarefeiro, desvinculado de um sentido. A caridade pressupõe um apelo ético, não basta estar no nível dos costumes. Ou a fé nos ajuda a nos tornarmos pessoas melhores, ou essa fé deve ser colocada sob suspeita. Isso porque a fé tem um apelo existencial, ao contrário da crença, que diz respeito, basicamente, ao exercício religioso da fé. A fé é, então, algo das entranhas do sujeito: ela passa a ser estruturante. Por isso é que uma fé que não contribui para a humanização do sujeito deve ser colocada sob suspeita.
O título desse texto é radical, eu sei. A intenção era, mesmo, provocar desconforto. Não se trata de um ataque à fé. Sequer se trata de um ataque. Mas de uma interpelação. Vivemos num país cuja maior parte da população se confessa religiosa e, desse tanto, a maioria se professa cristã. Esse é um dos países mais injustos e desiguais do mundo. Essa é uma contraposição alarmante. Ora, como é eticamente aceitável que convivamos com a injustiça e a desigualdade, sem que isso interpele de modo objetivo e transformador a nossa fé? É claro que a desigualdade em nosso país é sistêmica e reflete um projeto de poder. Mas a fé deve provocar aquela santa indignação, que nos coloque num movimento de transformação.
Há um artigo datado de 7 de novembro de 2015, no Jornal El País, assinado por Javier Salas, cujo nome é O bom samaritano é ateu. O artigo não é da teologia; trata de um outro campo de saber, a psicologia. O texto aborda resultados de uma pesquisa instigante, feita na Universidade de Chicago: crianças cuja criação se dá em ambientes não religiosos são mais altruístas que as de família religiosas. E mais: crianças de famílias religiosas são mais propensas à intolerância em relação ao erro dos outros e, com isso, mais igualmente propensas a atitudes punitivistas, que as crianças não religiosas. Outra pesquisa, liderada por um sociólogo de Stanford, apontava que a compaixão levava pessoas não religiosas a serem mais generosas em relação às outras pessoas. Mesmo que essas pesquisas não abordem a questão tipicamente brasileira, elas nos ajudam muito a pensar.
Pessoas religiosas tendem a ser caridosas. Mas a questão teológica que desponta aqui, a partir desses estudos supracitados, é sobre qual a significação de caridade que embasa a ação de pessoas de fé. Se voltarmos nossa atenção para o uso que corriqueiramente fazemos do termo caridade, perceberemos que seu uso está atrelado não a ações que provoquem transformações na vida daqueles que mais precisam, mas trata-se de ações geralmente paliativas, de socorro emergencial, apenas. Não significa dizer que o socorro emergencial não seja importante e necessário: ele o é, afinal, pessoas podem ser livradas da morte com ele. Mas não basta. Isso porque, como já salientamos anteriormente, a caridade necessita de pressuposto ético. E a ética provoca transformação.
Começamos nosso artigo dizendo que para muitas pessoas, a fé é motivo de orgulho. Talvez não devesse ser, porque os orgulhosos já têm por si próprios sua recompensa e a fé deve estar no âmbito da gratuidade e do amor. O título desse texto convoca à vergonha. Não queremos, com ele, estabelecer uma relação de culpa, porque isso não é em nada saudável. Agora que aqui já chegamos, esqueçamos essa convocação à vergonha e nos atentemos para a reflexão à qual somos chamados a fazer, sobre nossa própria experiência de pessoas de fé no mundo. Qual a contribuição que nossa fé, com todo o seu caráter existencial e estruturante, tem provocado no mundo? Recordo-me de Jesus, que nos ensina que é o amor transformador, com o qual atua as pessoas, que as farão serem reconhecidas como suas discípulas...

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